1. Falta meia hora para o filme acabar. O filme (em questão) é o The Big City (Mahanagar) (1963), do realizador indiano Satyajit Ray: e desde que o vi, em novembro do ano passado, há uma cena de que me estou sempre a lembrar. É uma cena muito simples, dura três minutos, pouco mais: mas é um gesto tão perfeito, tão rigoroso, tão terno e cruel, que se me pedissem para escrever sobre um plano, um enquadramento, um movimento de câmara que para mim fosse o melhor, seja lá o que isso for (como no ano passado um livro pediu a cem pessoas que fizessem), eu teria escrito sobre o plano que fecha esta cena. Mas vamos por partes. (Aviso já, para os mais sensíveis, ou para os mais narrativos, que vou contar o filme quase todo: mas só porque um filme não dá para contar em palavras. Se desse, para quê filmá-lo?) Então: estamos em Calcutá, na Índia, no início dos anos 60. Vemos uma casa e uma família: um homem e uma mulher, casados, e ainda, do lado do marido, uma irmã, jovem, que anda a estudar, a mãe, e o pai, que está velho e doente. A casa é pequena: e o dinheiro é pouco. O único salário da família é o do homem, que é funcionário num banco. Mas o dinheiro de um não chega para os cinco, e eles não querem que a irmã deixe de estudar. Só há uma solução: que é a mulher trabalhar. Os homens acham mal, claro: o lugar da mulher é na casa pequena, não na cidade grande. Mas ela arranja um emprego: começa a vender, porta-a-porta, uma máquina de tricotar de último modelo, e é boa no que faz, tanto que o patrão lhe dá mais responsabilidade e mais dinheiro. Uma colega de trabalho ensina-a a pintar os lábios, e toda essa cena é linda, ela perdida no espelho redondo: como se nunca se tivesse visto num espelho. Parece que a vida de casa começa a sair de dentro dela, como uma doença que o corpo expulsa. Um dia, o banco onde o marido trabalha cai em falência, fecha. E o dinheiro volta a ser pouco: mas agora é ela a sustentar a família.
2. A cena (a tal cena) começa com uma mão a apagar um cigarro. A câmara sobe, e a mão é do homem que foi despedido, o marido: que agora não sabe o que fazer às horas do dia. (Queimá-las, como os cigarros.) Ao fundo, ouvimos pessoas a falar, sobrepostas. Há um jornal sobre a mesa. Estamos num café. (Alguém, de quem só vemos as costas, traz um café, para reforçar essa ideia: e para tapar o homem, porque a cena vai ser sobre o homem esconder-se atrás das coisas.) Ele tira os óculos, amassa a testa com as mãos, esfrega os olhos: para se esquecer de desesperar, de entristecer? Quando pára de os esfregar, julga ver a sua mulher ao longe, a atravessar a rua. Põe os óculos para ter a certeza: é uma mulher de óculos de sol, e a mulher dele nunca usou óculos de sol, mas, sim, é ela. (Uma colega de trabalho deu-lhos na cena que vem imediatamente antes. Uma mulher que fica em casa não precisa de batom e de óculos de sol.) Ela chega a este lado da rua, e ia para outro lado qualquer, para a esquerda, mas encontra um homem que parece conhecer: cumprimentam-se, falam, e entram os dois no café. O marido dela tapa a cara com as mãos e com o jornal. Percebemos que o outro homem é casado com uma amiga dela, que já não se veem há muito tempo. «Pensavas que eu andava às compras?», diz ela, mal entra no café. (Ray também escrevia os guiões dos seus filmes: tudo é perfeitamente calibrado.) Ela diz-lhe que tem um trabalho, que é vendedora. Tenta (logo) vender-lhe uma daquelas máquinas. «Um dia destes, as mulheres não vão ter nada para fazer», diz o outro homem. E ele pergunta pelo marido dela, que nunca chegou a conhecer. Ela mente, diz o que já não é: que ele trabalha doze horas por dia, que mal o vê em casa. A mentira toma conta dela: até as mãos dela têm outro mexer. Aqui, Ray põe as três personagens em linha: da esquerda para a direita, e da frente para trás. Sentados à mesma mesa: o marido da amiga, mais perto de nós, de costas (desfocado), e a mulher, de frente para a câmara. Atrás dela, um pilar quadrado (que é quase uma quarta personagem, já lá vou). E, ao fundo, escondido e fechado à direita pelo pilar, o marido, desfocado também: a ouvir o que a mulher diz sobre ele.
A seguir, o outro homem pergunta se o marido dela é empregado (como diz Kracauer) ou se tem o seu próprio negócio. (Tudo nos diz que aquele homem tem mais dinheiro do que eles: mesmo a forma como ele fuma, como abre um novo maço de cigarros. O marido dela não fuma assim.) E os olhos dela gelam por um instante (Ray, nesse sobressalto, cortou para a cara dela): e diz «negócio», como num soluço. Entretanto, o tal plano já começou.
3. Vi esta semana outro filme do Satyajit Ray (Charulata, de 1964) e há lá uma cena incrível em que uma mulher (a mesma atriz, Madhabi Mukherjee, perfeita) está sentada num baloiço, no jardim da sua casa: e pede ao primo do marido (que está de visita: e que é um daqueles homens de bigode que nos dão cabo da vida) para lhe dar um primeiro empurrão («depois eu consigo sozinha», diz ela). Ele dá: e ela levanta voo, e começa a desenhar aquele arco de círculo, para a frente e para trás. Mas quando ela passa rente ao chão e tem de ganhar impulso para continuar a subir, para trás e para a frente, Ray põe lá um curtíssimo plano (deve ter menos de um segundo), apertado, só dos pés dela a tocar no chão. Outro realizador não o teria posto lá (não o teria filmado sequer), mas aquele plano, aquele meio segundo de filme, é ela a conseguir empurrar-se sozinha: e isso, essa imagem posta ali de fugida, muda a cena toda; mais, justifica o que a câmara vai fazer depois (que eu disse que não ia contar: mas é como aquele dia no campo), e diz tudo o que é preciso saber sobre relação entre aqueles dois, a mulher e o primo do bigode.
4. Falei de espelhos, lá em cima, quando falei da cena em que a mulher se vê, pela primeira vez, de boca pintada como um fruto maduro, mas há outro momento em que ela se vê, pela primeira vez, com dinheiro na mão, notas (dinheiro que ela mesma ganhou a trabalhar): e fecha os olhos para cheirar aquelas notas, ainda por vincar. É ao espelho que ela se vê pela primeira vez: como uma desconhecida. Já alguém terá dito isto, certamente: mas um espelho dentro de um filme é uma ideia cubista, porque é tornar simultâneos dois ou mais pontos de vista. (Que o cubismo e os anos de juventude do cinema tenham acontecido ao mesmo tempo, na segunda década do século XX, há de ser uma coincidência.) Mas, além disso, um espelho num filme é uma espécie de vertigem do corpo, que está permanentemente a cair entre dois lugares. Nós trocamos de lugar com o espelho: entramos no espelho para olhar para fora dele. Isto porque: o pilar quadrado, de que falei acima, é um prisma de quatro espelhos. (Para já, ainda não reparámos nisso, necessariamente.) Parece estar coberto de vidro ou de mármore negro, aquele pilar: parece engolir a luz, parece separar terrivelmente o homem e a mulher.
5. Há uma coisa que eu admiro (apaixonadamente) nos realizadores que, como Ray (e como Lubitsch e Hitchcock e Kurosawa), são capazes de imaginar, isto é, de transformar uma história, os factos de uma história («aconteceu isto e depois aconteceu aquilo»), em imagens e em durações: aqueles realizadores que têm uma forma de contar histórias que é visual e temporal. (Não são todos: longe disso. Basta recuarmos cem anos, e compararmos os filmes dos anos 20 com os dos anos 30, para percebermos a diferença que o cinema sonoro trouxe à imaginação dos filmes. É como diz a Norma Desmond, que se lembra bem porque esteve lá: “We didn’t need dialogue. We had faces!”. Depois do som, essa imaginação virou texto, virou trama e engenho: e os corpos que dançavam passaram a cantar.) Porque um filme (dizia eu) é aquilo que vemos e não vemos (o que fica dentro e fora do retângulo) e durante quanto tempo. (Abro aqui um parêntesis para dar por subentendido que os sons de um filme é tudo aquilo nós vemos com os ouvidos: isso, claro, quando um filme pede que os ouvidos vejam, em vez de ouvirem.) O tal plano, então, finalmente. Estamos na cara dela: e ela mente, inventa um marido que não tem. Diz que só trabalha por prazer, que, caso contrário, ele não a deixaria, e que em breve não terá de trabalhar mais. (Quase não olha para o marido da amiga: não consegue.) Entretanto, a câmara (Subrata Mitra é o diretor de fotografia) começou, muito lentamente, a fazer uma diagonal, a que liga os três corpos: nesse instante, falhou-me o ar. Para onde é que a câmara está a ir? Porquê tão devagar? Estão a ver aquele plano do Taxi Driver, em que a câmara se muda para o corredor, para não ter de olhar para Travis ao telefone? Aqui, esse pudor também é curiosidade: porque a mentira dela é o espelho (o negativo) dele. E, por isso, a câmara anda, muito devagar; e deixamos de ver a mulher, vemo-la agora só de costas, refletida no vidro negro do pilar; e vemos o marido da amiga; e, depois, vemos o marido dela: na face de outro espelho. (E a rua lá fora, a arder de luz, contra aquela escuridão.) Quando o movimento acaba, em dois espelhos sem princípio nem fim, vemos tudo ao mesmo tempo: o marido da amiga (que, narrativamente, é a oportunidade de mentir, é o termo da comparação); a mulher, que aprendeu a mentir; e o homem sobre quem ela mente: e que é menos do que a mentira. Só nós vemos isso tudo: só nós vemos a cara do homem a partir-se, como uma chávena que cai ao chão.
6. Acho que a moral da história (se é que há uma) é que é difícil ser homem e ser mulher: quando são os outros (como são sempre) a decidir o que isso é. Este mês de junho, a Cinemateca tem estado a passar os filmes da Regina Guimarães e do Saguenail: filmes que são só uma parte da prática deles de viverem ao mesmo tempo (ou de viverem o mesmo tempo) estes anos todos. Ora: estando no Porto, não pude ir a nenhuma sessão. (E a Regina não pôde vir conversar com a Odete, como faz todos os anos.) Mas vi que eles programaram, por entre os seus filmes, outros, de outras pessoas: filmes que conversam com os deles, que os provocaram. Acho que entretanto aprendi (também com eles, que programam filmes há anos e anos) que ver filmes, e vê-los como quem investiga um crime, é uma espécie de emprego: em que nos pagam em imagens e em faltas de ar. Por isso, quando penso em como seria a minha escola ideal (em que eu seria professor e aluno), só consigo pensar em algo deste género. Um lugar onde alguém (onde toda a gente) partilha (generosa, entusiasticamente) os seus amores, esperando que, ao partilhá-los, o entusiasmo por eles cresça: até não caber mais em tão poucas pessoas e precisar de ser partilhado outra vez. É isso que fazemos, furiosamente, às segundas à tarde: e é isso que tentamos fazer todos os dias, desde que abrimos a porta, faz hoje três anos.
Vemo-nos na Marcha, que é amanhã.
Boa semana,
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