A noite verde
«Blueprints of a garden's plan turn to green, / cannot explain» (Rufus Wainwright)
1. Desde que vi o filme To Catch a Thief, de Alfred Hitchcock, há uma série de anos já, a noite para mim é verde. Podia ser cor-de-laranja, como eram as nossas ruas à noite, por causa das luzes de sódio. Ou azul, como a noite americana. Mas não, é verde: como se a víssemos através de uma esmeralda, para lhe aferir o grau de claridade. (Afinal de contas, este é um filme sobre um ladrão de jóias.) A noite verde é uma noite falsa, uma noite-cinema. Às vezes é só um dia varrido a verde: traído pelas sombras duras do sol. (Os filmes mais antigos faziam isso, pintavam cenas inteiras com uma cor, verde, azul, vermelho, e isso dizia-nos que era floresta ou noite ou casa a arder: aprendíamos esse código.) Outras vezes é uma noite feita na caixa preta do estúdio: onde é sempre noite. Nesses casos, desenha-se a luz no meio da noite: a luz e a sombra. (É isso o barroco, termos aprendido a desenhar a luz no meio da noite: a acender um fogo no vazio.) O filme de Hitchcock começa e acaba com a noite por cima dos telhados. (O ladrão do título tem os pés leves.) E quando, em algumas cenas, o telhado está pousado no chão (porque o cinema mente para dizer a verdade), parece até que as telhas são verdes, e as chaminés: como quando se aponta uma luz vermelha ao pano de boca para o tornar ainda mais vermelho. Na longa conversa que gravou com o Truffaut em 1962, e que deu este livro, Hitchcock explica o porquê da noite verde. Diz ele que, «since I hate royal-blue skies, I tried to get rid of the Technicolor blue for the night scenes. So we shot with a green filter to get the dark slate blue, the real color of night, but it still didn’t come out as I wanted it». Ou seja, é o azul-lousa, a verdadeira cor da noite (segundo Hitchcock), que deita um filme verde sobre as coisas. Três anos mais tarde, em Vertigo, o verde volta a aparecer, mas aí é outro verde: e já não segue a regra da noite.
2. Antes disso: Michel Pastoureau resume os usos que hoje fazemos do verde. «Há várias noções espontaneamente associadas ao verde. Algumas são negativas: o veneno, o malefício, a inveja, a avareza, o ciúme. Outras, em maior número, positivas: a calma, a frescura, a juventude, a harmonia, a simpatia, a naturalidade, a amizade, a confiança.» (Na verdade, é quase como se houvesse um verde-noite e um verde-dia.) «Outrora cor instável e agitada, muitas vezes transgressiva, o verde parece ter-se tornado bem mais sensato. O seu papel nos códigos de sinalização (permissão, autorização, livre-trânsito) e no retorno à natureza (espaços verdes, defesa do ambiente, ecologia sob todas as suas formas) contribuiu seguramente para isso.» Apesar de tudo, Pastoureau diz, algumas páginas atrás, que a nossa ambivalência em relação ao verde se deve a «crenças com uma vida longa»: «o verde é incerto, descolora à luz, evapora-se, escurece, amarelece; ou então: o verde é perigoso, corrosivo, tóxico, provoca doenças, por vezes mortais; ou ainda, e sobretudo: o verde dá azar, é a cor das bruxas, do Diabo e de todas as forças do mal». Quando, em Vertigo, vemos Madeleine pela primeira vez (e, nessa altura, já ouvimos falar muito sobre ela, já olhamos para ela através de um filtro), ela é um tecido verde aos ombros, verde-esmeralda: numa sala toda vermelha, como a de Matisse. (Hitchcock, melhor do que ninguém, sabe que o cinema é manipulação: diz-nos exatamente para onde olhar, prende-nos ao olhar de Scottie sobre aquela mulher.) Depois, seguimo-la: e ela vai ao volante de um carro verde. Tudo é verde: e tudo nos diz para termos cuidado. Como faz muitas vezes durante a conversa com Truffaut, Hitchcock explica como conseguiu determinado efeito: é o artesão a falar. «At the beginning of the picture, when James Stewart follows Madeleine to the cemetery, we gave her a dreamlike, mysterious quality by shooting through a fog filter.» (Às vezes esquecemo-nos que tudo no cinema resulta de uma escolha.) «That gave us a green effect, like fog over the bright sunshine.» (Em 2017, Guy Maddin, Evan Johnson e Galen Johnson refizeram o Vertigo de Hitchcock a partir de excertos de outros filmes. É um exercício sobre a citação: e sobre como o cinema e a televisão estão sempre a remastigar a própria história. Chama-se The Green Fog: e está aqui todo. Às vezes, um fumo verde desprende-se das coisas, como nos filmes de ficção científica.) «Then, later on, when Stewart first meets Judy, I decided to make her live at the Empire Hotel in Post Street because it has a green neon sign flashing continually outside the window. So when the girl emerges from the bathroom, that green light gives her the same subtle, ghostlike quality.»
3. A propósito da distância que o verde põe à frente dos olhos: Pastoureau, outra vez, na sua história cultural do verde. «A este respeito» (a respeito de esmeraldas) «ficou célebre uma passagem de Suetónio: Nero, no anfiteatro, teria visto os combates de gladiadores através de uma grande esmeralda, para não ser incomodado pelos raios do Sol. Essa passagem foi muitas vezes mal traduzida ou mal interpretada.» (Já tínhamos falado sobre isto, no que respeita às cores: muitas vezes, o exato nome da cor perde-se quando passa de uns para outros olhos.) «É verdade que Nero gostava de assistir a tais combates, mas não observava os gladiadores através de uma esmeralda, nem mesmo através de uma pedra de berilo, menos colorida mas finamente talhada.» (O berilo, que também é verde, ou um verde-azul do mar.) «Temos de entender o texto de outra forma: Nero deliciava-se com o espectáculo dos gladiadores, ficava longas horas a contemplá-los e, para descansar a vista, olhava de tempos a tempos para uma grande esmeralda, já que essa pedra passava por ter, entre outras virtudes, a de descansar os olhos. Mais tarde, tal como Nero, também os escribas e os iluminadores medievais, que passavam boa parte do dia debruçados sobre os livros e o pergaminho, repousarão a sua vista contemplando de vez em quando uma esmeralda.»
4. Há vários filmes em que a noite é verde, ainda que, na maior parte deles, o efeito não seja tão artificial (isto é, tão desenhado, tão intencional) como nos filmes de Hitchcock. (Ao que parece, algumas cidades chegaram a usar lâmpadas de vapor de mercúrio, que espalhavam uma luz verde, azulada, sobre as coisas. Convém não esquecer que, nas cidades, a cor da noite é uma questão de química.) Lembrei-me da noite verde em Hitchcock porque, no último sábado, o Cinema Batalha passou o filme Toute une nuit, de Chantal Akerman. (Vale a pena acompanhar os restauros que o Batalha anda a passar duas vezes por mês. O programa chama-se Tesouros do arquivo.) Estamos em Bruxelas, nos anos oitenta: e está uma noite de calor e de tempestade. As horas não passam: porque a noite é o tempo que os relógios não contam. No meio de toda essa inação (que é a dos planos que quase não mexem e da luz que quase não muda: linda, a luz, verdes e roxos e pequenos fogos por todo o lado), o filme é só ação, ou melhor, é só ações: as pessoas (vinte ou trinta, muitas) são verbos, são máquinas de fazer. (Truffaut, que escreveu um livro sobre os filmes da sua vida, diz que «Alfred Hitchcock partilha com Renoir, Rossellini, Orson Welles e alguns outros grandes cineastas a mesma despreocupação a respeito da psicologia», que é o mesmo que dizer: as suas personagens não são sujeitos, são predicados. Exemplo disso: nesse filme, poderíamos dizer que Cary Grant não é um homem, é o verbo roubar. O filme é ele a provar que já não é esse verbo.) Na verdade, minto: porque o filme de Akerman se faz todo naqueles quases ali em cima. Para ela (e Jeanne Dielman é um bom exemplo disso), o cinema também é (e, às vezes, é sobretudo) aquilo que acontece entre as ações: a espera, o repouso, a impaciência, o olhar que sai pela janela. (A propósito de intervalos entre as coisas, o The Green Fog faz uma coisa, bastante perversa, que eu adoro, que é: usa uma cena de um determinado filme, uma conversa entre duas pessoas, por exemplo, mas corta tudo o que é dito, bruscamente, à faca. O que é que fica? As reações, as respirações, os estalidos da língua: os intervalos entre as palavras. Seria o mesmo que, a uma página de um livro, tirar o texto todo e deixar só a pontuação. Acidentalmente, ou talvez não, torna-se um filme sobre aqueles atores que fazem demais, que pontuam demais, que obedecem aos rigores do naturalismo. Donde se conclui que o real, ou aquilo que nos parece real, na verdade, é sempre demasiado.)
5. Lembrei-me muitas vezes de Edward Hopper enquanto via aquela noite em Bruxelas. Escreve Simon Morley, neste livro: «Hopper was keenly aware of how cinema was changing the way people experienced the world, for example, and of the associations viewers brought to his pictures, which are often like stills from movies of the period, and include innovations derived from cinematic cropping and other framing devices». E não admira que eu pensasse nele, porque ele só pinta os intervalos, os momentos em nada mexe, corpo e espaço: a mulher de pé no cinema, o homem que lê o jornal. «In Nighthawks (1942)» (que é outra noite tingida de verde, em widescreen) «we seem to be watching characters from a Hollywood film noir – a gangster and his moll, and mysterious lone figure; something is about to happen, and it’s probably not good». (Agora que penso, o Rear Window são vários quadros do Hopper: ligados pelo olhar.) Há outro filme, de 2013, outro exercício (hoje não páro de dizer isto: como se os filmes não fossem todos exercícios), chamado Shirley: Visions of Reality. O realizador, Gustav Deutsch, conta uma história a partir de quadros de Hopper. É a história de três assaltos. Primeiro, o cinema roubou à pintura (as composições); depois, a pintura roubou ao cinema (os enquadramentos); e, no fim, o cinema volta a roubar à pintura: e a obrigá-la à narrativa.
6. Temos, portanto, o verde que mancha, que adoece (radioativo), e o verde que lava (natureza, bálsamo para os olhos): o verde-noite e o verde-dia. Lembrei-me, entretanto, daquelas imagens que vemos (vezes demais) na televisão: da guerra durante a noite, filtrada de verde. Fui ler sobre isso, sobre instrumentos de visão noturna, para perceber por que razão eram verdes essas imagens: aparentemente, achou-se que o verde era a cor mais meiga para os olhos durante as longas noites de combates. Morte e descanso: verde-noite e verde-dia, ao mesmo tempo. Noutra época, noutro lugar, o imperador vê a sua cidade, em chamas, no brilho da sua esmeralda.
Boa semana,
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