1. Esta é (como são quase todas) a história de um desvio. (São as melhores histórias, na verdade: que piada tinha se o Ulisses voltasse direto para casa?) Começa assim: há umas semanas, a Criterion anunciou que em junho (que é o mês do Orgulho e do nosso aniversário: este ano é o terceiro) vai lançar uma edição do filme Querelle, de Rainer Werner Fassbinder. (Sou capaz de ter dado um grito quando vi a notícia: um grito todo amarelo, como um copo de cerveja morna.) Para quem não sabe, a Criterion é uma casa-de-edição (como dizem os franceses) de filmes em DVD e Blu-ray. Mas é mais do que isso: é uma coleção, é um ato de escolher filmes (por um lado) e (por outro) de os reler, de os contextualizar, de os pôr no tempo deles e no nosso. As edições da Criterion trazem sempre versões restauradas dos filmes, comentários, entrevistas, vídeo-ensaios: trazem o nosso olhar de hoje, crítico e estético, sobre os filmes de ontem. Aliás, deu-se uma coisa curiosa: falou-se mais da capa do que do filme. A ilustração da capa mostra o protagonista Querelle contra o horizonte amarelo: mas a pele dele parece de plástico, brilha como o plástico brilha. Importa talvez dizer que Fassbinder se inspirou nos homens que Tom of Finland desenhou, homens que antes não existiam, mas que, a meio do outro século, passaram a existir: homens-músculo, motoqueiros, operários, polícias, marinheiros, corpos todos a transbordar; e importa dizer que a grafite do lápis do Tom of Finland dava esse brilho aos volumes do corpo, como se ele os tivesse polido com um esfregão de aço. Enfim: achou-se que a ilustração da capa do Querelle tinha sido feita por uma qualquer inteligência artificial, até que o ilustrador teve de vir dizer que não. É a história de um longo processo. Tom of Finland inventou aqueles corpos (plúmbeos, inchados), as várias máquinas do lucro mastigaram-nos e cuspiram-nos, tornaram-nos reais e irreais: e agora já nem o desejo dos homens pertence aos homens.
2. Querelle é o último filme que Fassbinder rodou antes de morrer em 1982, com 37 anos. Tudo ali é falso: o mar tem um sol de cartão ao fundo. Tudo ali é um amarelo que nos cega os olhos: como o desejo. «Querelle é a minha obra mais importante», terá dito Fassbinder na sua última entrevista. Por tudo isso: ia pegar no Querelle de Brest (do Jean Genet) para o ler, finalmente. Começa assim (o livro): «A ideia de assassínio evoca muitas vezes a ideia de mar, de marinheiros». (Neste momento, só temos cá a tradução inglesa. Mas o livro já foi publicado em português, há mais de trinta anos: chamava-se Querelle: amar e matar.) O que aconteceu foi que, entretanto, desviei-me: comecei a preparar-me para a apresentação do novo livro do Ricardo Marques, que é hoje (sexta-feira) à tarde (mais sobre isso no último ponto), e estava aqui a pensar em como a história de um ano se pode contar (não dia a dia, trezentas e sessenta e cinco vezes, mas) pelas coisas que se fizeram nesse ano, os livros, os filmes, os quadros, as canções, o espírito do tempo (como dizem os alemães). Quando dei por mim, tinha pegado num livro que tenho desde que saiu, mas que nunca tinha lido. Chama-se As peças que faltam, de Henri Lefebvre. (Publicou a BCF: e já esgotou.) Agora apetece-me andar sempre com ele no bolso. É uma história de um mundo que não foi, por uma ou por outra razão. Por exemplo: «De Kokain [Cocaína], romance de Pitigrilli, Rainer Werner Fassbinder retirou um argumento que nunca foi rodado». Mas as perdas são muitas e são várias. «James Joyce e John Milton escreveram as suas obras primas, Finnegans Wake e Paradise Lost, enquanto perdiam a visão». «Excepto dois recibos, não ficou para a posteridade nenhum texto redigido pela mão de Molière». «Já só restam três palavras da língua cúmbrica, da família do galês, desaparecida no século VII». «William Burroughs não guardava nenhuma memória da redacção do Festim Nu». «Numa taberna de Deptford, Marlowe, vinte e nove anos, morre assassinado no dia 30 de Maio de 1593; já não sabemos quem terá ordenado a sua eliminação». Perderam-se, entre outras coisas: a visão, a letra, a língua, a memória, a vida. E perderam-se textos, muitos. É o caso do teatro da Grécia Antiga. Passaram dois mil e quinhentos anos: «Da trilogia de Ésquilo subsiste apenas o Prometeu Agrilhoado; chegaram até nós alguns fragmentos da segunda peça, Prometeu Libertado; a terceira parte, Prometeu Portador do Fogo, está inteiramente perdida». «Sófocles será autor de cento e vinte e três peças; delas subsistem apenas sete». «Das quarenta e quatro peças que Aristófanes terá produzido, apenas onze chegaram até nós». Como ler, hoje, esses textos? E como tirar deles lições sobre os textos que se perderam? William Marx, no livro The Tomb of Oedipus, sugere que nos deixemos perder no labirinto. «Twenty-four centuries have passed, and all that is left are ruins. Ruins so beautiful that we think we’re dealing with the actual works, as if the Venus of Milo were not missing two arms. A terrible illusion.» A solução: é especular: «The solution is to get rid of received ideas. To launch into a process of defamiliarization. To learn what tragedy is not. To approach it in a vacuum. To explain it – this only seems like a paradox – by its mystery.»
3. O curador de arte Hans Ulrich Obrist diz que quando fala com artistas, quando visita os lugares onde eles trabalham (Obrist tem um arquivo imenso de conversas com artistas: e publicou muitas delas em livro), faz-lhes sempre a mesma pergunta: qual é o projeto que sempre quis fazer e nunca fez (ou nunca pôde, ou nunca conseguiu)? As razões para isso podem ser várias: entre o pouco dinheiro e a muita ambição. Seja como for, Obrist acha (e eu concordo) que perguntar isso aos artistas é fazer um museu da imaginação: é olhar para a arte como um trabalho todo da imaginação. É muito bonito: porque, quase desde o princípio, a prática do Obrist tem sido uma espécie de dever de testemunho e de memória: porque fazer arte e falar dela não são duas coisas assim tão diferentes. Aliás, desde o meio do século passado, ser artista (ou ser um certo tipo de artista) já não é dominar as técnicas e os materiais: ser artista é ter a ideia, é combinar, pôr em relação, é escrever e descrever os passos do gesto artístico. Levando isso ao extremo, é roubar aos colecionadores e ao mercado da arte um objeto que se possa comprar e vender, único, irrepetível. É fazer que a coisa apareça só pelo ato da escrita, pela palavra. Se isso for verdade: aquilo que vemos quando vamos a um museu não é a obra, mas aquilo que fica depois da ideia.
4. Escolher é o primeiro gesto do artista: escolher o tema, a matéria, a ferramenta. Escolher é o primeiro gesto do curador: é desenhar a atenção de quem vê. Escreve o Lefebvre: «Perante a inflação de peças de Teatro Nô por volta do ano 1400, um imperador do Japão decide conservar quatrocentas e cinquenta e destruir as restantes». A questão é: perante os limites da atenção humana (que são muito estreitos), que histórias queremos que contem sobre nós os que hão de vir? Que é o mesmo que perguntarmos a nós mesmos: que sementes queremos nós guardar em Svalbard?
5. Há uns anos, a Criterion foi acusada de ter um catálogo demasiado branco: segundo o New York Times, em 2020 só quatro realizadores afro-americanos tinham filmes na coleção. («There are, for example, more directors in the Criterion Collection with the last name Anderson than there are African-Americans.») Além disso, dizia-se que o catálogo era demasiado masculino e demasiado centrado naquilo a que se chama o Norte global. «Women and other people of color appeared in slightly larger numbers. About 11 percent of directors were Asian; 2 percent were Latino; and about 7 percent were women.» No mesmo artigo, Amy Heller, a presidente de outra casa-editora de filmes, diz que «[t]he overwhelming majority of the filmmakers anointed, like the people who chose them, were white men. The world they live in affirms their knowledge, acumen, taste and authority». Nessa altura, em 2020, o presidente da Criterion desculpava-se com os seus próprios ângulos mortos (todos temos os nossos), mas dizia que a empresa estava a contratar um grupo curatorial mais diverso: e que daí se seguiria a diversidade das escolhas. (É um bom princípio.) Desde então, a Criterion tem lançado mais filmes dos grupos subrepresentados: o que significa, necessariamente, mais filmes dos últimos anos e filmes menos conhecidos. Significa repensar e refazer o cânone: porque o cânone é o que pusermos lá dentro. Não se trata, parece-me, de querer recentrá-lo, de procurar para ele um novo centro ou vários: trata-se, sim, de descentrá-lo, de pensá-lo em arquipélago.
6. O Ricardo Marques escreveu um livro sobre (isto é, em cima d)os destroços de 1959, os quadros, os filmes, as canções desse ano, os poemas, as cidades. Chama-se Chumbo: e vamos apresentá-lo, o Ricardo e eu. Um dos destroços, uma das tábuas que a tempestade roubou ao barco de cinquenta e nove (uma tábua a que nos possamos agarrar), é o filme Hiroshima mon amour, de Alain Resnais. (O livro de Marguerite Duras, que é e não é o guião do filme, voltou há poucas semanas às livrarias.) Um homem japonês e uma mulher francesa, os dois sem nome. (Está no Lefebvre: «“Somos todos sem-nome. Inacabados”, Victor Serge».) Ele diz: «Tu não viste nada em Hiroshima. Nada». E ela responde: «Eu vi tudo. Tudo». Ambos têm razão. Duras está a escrever e Resnais a filmar a impossibilidade de se falar sobre Hiroshima, de se fazer justiça à cidade e aos mortos de Hiroshima. Resnais fez o mesmo poucos anos antes, em Nuit et brouillard: perante a impossibilidade de se mostrar o Holocausto (de que as imagens de arquivo só guardam os destroços e os náufragos), mostram-se as ervas que agora crescem nos carris, as flores que nascem dos fornos. (Tristes flores.) Em Hiroshima, podem mostrar-se os lugares que a bomba levantou, os corpos queimados: mas pode, realmente, mostrar-se o que é uma bomba a explodir, ou o que é o calor de dez mil sóis? Não: conta-se a história do vazio que a bomba deixou. (Especular sobre o que falta também é, forçosamente, reler o que ficou.) É, como diz a própria Duras, um «Monumento do Vazio»: é essa a palavra de Hiroshima. «[A]s explicações, à falta de outra coisa.» E ela (a mulher sem nome) diz: «… Ouve-me. Sei também que isto recomeçará. / Duzentos mil mortos. / Oitenta mil feridos. / Em nove segundos. Estes números são oficiais. E a coisa recomeçará». No início desta semana, depois de ler o livro, disse ao Ricardo Marques: «Tenho três palavras para ti: lápis, peso e bala. Continuamos na sexta». Sexta é hoje: às seis horas, na livraria.
Boa semana,
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