(cont.)
[1,] parallel play: a história oficial de um negócio tende a ser um poema à duração ou um relato de somas, o que construiu, o que ganhou, o que cresceu, o objetivo capitalista de qualquer projeto será o de se tornar inevitável (incontornável até, em todo o seu sentido espacial, um estorvo no meio do caminho), mesmo para outros negócios ou instituições há mais tempo em atividade na cidade. Tudo isso é, no entanto, bem pouco interessante
de contar porque, ajudando imenso de formas muito específicas (mantém a porta aberta), não é senão uma palmadinha nas costas, um incentivo a darmos sempre mais. Pelo contrário, o que perdemos tem acabado por nos marcar mais do que o que vamos acumulando. Senti isso pela primeira vez há um ano, quando um amigo muito próximo e outras pessoas-da-casa tiveram de mudar de cidade. De repente, ele já não estava ali, à soleira da porta,
a uma pausa de entrar. Tivemos a sorte de construir em pouco tempo uma relação que tem sabido como se adaptar à nova forma de a viver, eu ganhei por exemplo uma vontade renovada de ir mais regularmente a Lisboa para visitas (e os amigos dos amigos tornam-se também amigos pelo caminho), mas claro que tudo muda. Para quem, como nós que passamos tantas horas na livraria, o dia-a-dia de trabalho é quase exclusivamente a vida
que temos para dar aos outros, desaparecer desse quotidiano tem de causar dano. Lembrei-me dele esta semana porque voltou a acontecer. Novo ano letivo, mais pessoas-da-casa tiveram uma mudança na sua vida, pessoal ou profissional, que as fez ficar um pouco mais longe, seja o que isso significar em cada caso. Claro que se fazem planos com mais ou menos certeza de os conseguir levar a bom porto, mas, no entretanto, é menos um abraço.
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[3,] na próxima semana, quinta-feira 3 de outubro, às 18h, recebemos João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira na aberta para uma conversa sobre 1983, a edição Rialto6 / Documenta que saiu há quase um ano e está prestes a esgotar, mas nunca é tarde para conversar com pessoas de quem gostamos. 1983 foi um conjunto de instalações, performances e conversas que duraram 3 meses, de fevereiro a abril de 2022, em Lisboa. Para além de fotografias
das instalações e performances (com Guilherme Leal, Jenny Larrue, João Grosso e Symone De Lá Dragma), este livro reúne ainda o monólogo «Amanhã todos seremos centauros» de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, os poemas «Pastelaria» de Mário Cesariny e «As palavras estão todas do lado de dentro» de André Tecedeiro, o ensaio «Cama de alarme» de Alexandre Melo e conversas com Sarah Schulman e Edwin Nasr («Activismo
vulnerável»), Maria José Campos («Porque a sida existe»), Jó Bernardo* («Na Esquina Cor-de-Rosa»), João Grosso («Para uma afirmação política da existência») e Nélson Alves Ramalho («Se as putas fossem flores esta rua era um jardim»). Ao longo do ano, e mesmo depois de António Fernando Cascais organizar Dissidências e resistências homossexuais no século XX português, foi a obra que mais nos ajudou quando nos perguntavam por história queer portuguesa.
* A Jó Bernardo abriu a Esquina Cor-de-Rosa na esquina de um prédio cor-de-rosa em Lisboa, mais concretamente na porta do n.º1 da Travessa do Monte do Carmo (com janela para a Rua Cecílio de Sousa), onde hoje há um bar. Se ainda aberta, a primeira livraria-do-género com espaço físico em Portugal teria feito 25 anos neste mês de setembro (impossível não era, a Berkana em Madrid celebrou 30 no ano passado). Parabéns, Jó. E obrigado.
[4,] dei por mim emocionado a olhar para um charriot de casacos, em julho, na noite da inauguração de Casa Vale Ferreira, exposição na Casa de Serralves em que JPV+NAF celebram 25 anos de vida e trabalho em conjunto (um com o outro e com muitas outras pessoas): cada peça foi adornada com fotos e enfeites alusivos a uma pessoa ou grupo ou tema da cultura LGBT e, todos juntos, aqueles casacos são uma enciclopédia que, como nos poemas
de Luís Miguel Nava, podemos vestir debaixo da pele, se formos descodificando as referências. Comigo resultou e partilhar essa noite com o Ricardo e alguns outros amigos foi realmente um dos momentos mais felizes deste ano. Melhor: essa sensação de euforia repetiu-se uns minutos depois, no piso superior da Casa, quando vi o urinol verde grafitado de poesia homoerótica portuguesa, já não enciclopédia mas antologia, dependente do nosso corpo
e da nossa curiosidade para se concretizar (como nenhum livro conseguiria). A exposição podia ter sido só isso. Mas não foi. E agora, no início de outubro, ainda vão acrescentar mais uma coisa. O Nuno e o João vêm à livraria na próxima quinta-feira porque vão estar no Porto a montar a instalação 1983, para uma série de performances a 5 e 6 de outubro, em Serralves. Vejam tudo aqui. Talvez tenha a sorte de conseguir ouvir o João Grosso a dizer
Não. Nós não morremos. Vamos sempre a algum lado e depois voltamos. Às vezes não trazemos o mesmo corpo, mas há sempre outros corpos para ocupar o nosso espaço. Não. Nós não morremos. Voamos. Galopamos. Rastejamos. Fugimos. Escondemo-nos. Em qualquer buraco escuro. Debaixo de uma pedra. Numa frincha da fachada respeitável do prédio. Dentro das árvores mal-escondidas nos passeios. Ou tapadas pelas tampas das águas pluviais.
Mas não morremos. (…) Não. Nós não morremos. Morremos de riso com as histórias sórdidas e abrilhantadas que contamos umas às outras. Morremos de inveja dos pechisbeques novos, sempre roubados, ou de alguma a quem um cliente mais apaixonado deu um presente, que ela nos esfrega na cara. Morremos de tédio na espera a que nos obrigam as noites mais calmas, quando o tempo não passa e o dinheiro não chega. (…)
Morremos de solidão. Às vezes de cansaço. Outras de fome. Morremos de medo e morremos de curiosidade pelo perigo. E de medo e de raiva outra vez. Morremos de amor pelo rapaz bonito que dorme sempre dentro do carro e morremos de dor por não ser correspondidas por alguém que nem sequer conhecemos. Morremos de felicidade pelas coisas mais parvas que nos acontecem. (…) Morremos de intensidade. Do calor e do frio.
Morremos de vontade. Morremos de desejo. Pela boca como os peixes ou nos braços de alguém. De vontade. De loucura. Como se a morte fosse o exagero da própria vida. As sobras. O resto. Morremos tanto e tão exageradamente que quando somos mortas já nem damos por isso. Sem alarido. Mais uma. Ou menos uma. Rainhas das espadas. Ases dos paus. Lindas de morrer. Morrer, morremos todas, mas umas mais do que as outras.
[5,] o festival Queer Lisboa está quase a acabar e, em breve, chega o Queer Porto: na verdade, esta décima edição começa na aberta. Segunda-feira 7 de outubro, às 18h, inaugura a exposição de retratos Queer Spectrum, de Dana Click. E depois disso há muitos filmes e conversas até dia 12. Para quem não conseguir vir à inauguração, Dana volta a passar pela livraria na quinta-feira 10 de outubro, às 18h, para uma visita comentada a meio do festival.
[6,] lembro-me que o Festival Queer começou, no Porto, numa edição-zero com John Waters numa sala mais afastada do centro, mas a primeira vez que participei foi na festa de encerramento da primeira edição, em 2015. Algures numa parede do Maus Hábitos, por baixo de um rizoma, havia um QR Code para o áudio de um poema. É um dos meus poemas preferidos, apresentado como «Terceiro excurso» no livro O silêncio dos poetas, de Alberto Pimenta.
Já reparaste que tens o mundo inteiro
dentro da tua cabeça
e esse mundo em brutal compressão dentro da tua cabeça
é o teu mundo
e já reparaste que eu tenho o mundo inteiro
dentro da minha cabeça
e esse mundo em brutal compressão dentro da minha cabeça
é o meu mundo
o qual neste momento não te está a entrar pelos olhos
mas através dos nomes
pois o que tu tens dentro da tua cabeça
e o que eu tenho dentro da minha cabeça
são os nomes do mundo em brutal compressão
como um filtro ou coador
de forma que nem és tu que conheces o mundo
nem sou eu que conheço o mundo
mas os nomes que tu conheces é que conhecem o mundo
e os nomes que eu conheço é que conhecem o mundo
o qual entra em ti e o qual entra em mim
através dos nomes que já tem
de forma que o que entra pelos meus olhos não pode
entrar pelos teus olhos
mas só pela tua cabeça através
dos nomes dados pela minha cabeça
àquilo que entrou pelos meus olhos já com nomes
e do mesmo modo
o que entra pelos teus olhos não pode
entrar pelos meus olhos
mas só pela minha cabeça através
dos nomes dados pela tua cabeça
àquilo que entrou pelos teus olhos já com nomes
e assim o que tu vês
já está normalmente dentro de ti antes de tu o veres
e assim o que eu vejo
já está normalmente dentro de mim antes de eu o ver
e tudo quanto tu possas ver para aquém ou para além dos nomes
é indizível e fica dentro de ti
e tudo quanto eu possa ver para aquém ou para além dos nomes
é indizível e fica dentro de mim
e é assim que vamos construindo a nós mesmos pela
segunda vez
tu a ti e eu a mim
construindo urna consciência irrepetível e intransmissível
cada vez mais intensa e em si
tu em ti eu em mim
no entanto continuando a falar um com o outro
tu comigo e eu contigo
cada um
tentando dizer ao outro
como é o mundo inteiro que tem dentro da cabeça
e porque é e para que é
tu o teu mundo que tens dentro da tua cabeça
eu o meu mundo que tenho dentro da minha cabeça
até que morra um de nós
e depois o outro