1. O que se passa é o seguinte: ando a ouvir Björk, obsessivamente, há mais de uma semana. Álbuns, lados B, versões, remixes: tudo, obsessiva, meticulosamente. Na semana passada, encontrei umas coisas que escrevi quando tinha vinte, vinte e um anos, e o que mais me espantou foi, provavelmente, isso mesmo, o rigor com que eu já organizava as minhas obsessões: os altos e os baixos, a euforia e a solidão. Que tristes, os que veem mais, os que sentem mais do que todos os outros. Que triste, um amor que não é óbvio para mais ninguém. Falei sobre isso com algumas pessoas esta semana, sobre ler ou pesquisar ou ocupar de tal maneira a cabeça com uma coisa só de cada vez: e responderam-me que sim, que é assim que eu sou (para o bem e para o mal), e falaram-me de uma espécie de beleza do mergulho, do mergulho total, do (como me disse um amigo meu: do) «espantamento de gostar da coisa»: artigo definido, singular. Mas: e quando um livro não se deixa abrir? Obviamente, com o tempo (que é a morte de tudo), a coisa passa e dá lugar a uma outra coisa, que ocupa o mesmo lugar inteiro: e assim (sucessivamente), umas atrás das outras. Mas fica sempre um sedimento qualquer no fundo da chávena: e o nosso mundo (o de pessoas como eu) faz-se, também, dos fantasmas dessas obsessões. Muitas vezes, olhamos para trás e mal os reconhecemos, aos fantasmas: ou porque o tempo não lhes foi meigo, ou, então, porque nós mesmos, por um dever de cautela ou então de jogo, os cobrimos de panos e de véus. Não vos acontece isso: relerem alguma coisa que escreveram há vários anos, quando já eram ou não eram ainda as pessoas que são hoje, e sentirem que está ali alguma coisa escondida que já não conseguem decifrar? Que é tudo demasiado complicado, ou literário, ou poético, quando não precisava de ser? Que o que queriam era escrever tudo o mais claramente possível, mas que, por esta ou aquela razão, não podiam, e, por isso, escreveram aquilo, aquela névoa (pejorativo)? Senti isso tantas vezes na semana passada, a reler as tais coisas que encontrei: que já não sabia a razão daqueles textos, ou (se calhar é mais justo dizer assim) que já não sabia a razão daquele código. Às vezes, à força de os reler (os textos), eles lá se tornam mais claros, mais transparentes. Mas se eu hoje, vinte anos depois, não fosse um daqueles estranhos que estava a tentar enganar com metáforas, o que é que isso queria dizer? Ou melhor, será bom ou mau: não mudarmos muito, sofrermos ainda com as mesmas coisas, amarmos da mesma maneira (como a água a dar na pedra)?
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3. Ao mesmo tempo, ando a ler sobre a Medeia, peça e personagem, para preparar as sessões que temos na livraria às terças-feiras. Faltam três semanas, vamos a meio do texto do Eurípides: ainda tudo pode, e tudo vai, acontecer. E, provavelmente, vocês, os da arte, os da investigação, os do mergulho total, já sentiram isto, ou algo parecido: que, quando estão no meio da água, e tentam olhar para fora, tudo fica da cor da água. Começam a encontrar a coisa que estão a pesquisar em todo o lado: sinais, evidências. Tudo são confirmações, tudo são papelinhos deixados, em todas as divisões da casa, pela coisa amada. De repente, já não sabemos onde pusemos as chaves: e está tudo bem, porque a atenção tem coisas melhores com que se ocupar. Isto porque a Björk tem uma canção, que escreveu logo depois de se separar do marido de muitos anos, o artista Matthew Barney: chama-se Black Lake. (Todo esse álbum, Vulnicura, de 2015, é como um buraco de sangue: sangue grosso, sangue doce e azedo.) E quando eu estava a ouvir, e depois a ler, essa canção, só encontrava a Medeia em todo o lado. Senão vejamos: «our bond was my womb / but our bond has broken». Medeia. «I am one wound / my pulsating body / suffering being». Medeia. «My heart is enormous lake / black with potion / I am blind / drowning in this ocean». Medeia: e eu nas minhas obsessões. «I did it for love / I honored my feelings / You betrayed your own heart». Medeia (consultar a backstory). Mais, e tanto: «family was always / our sacred mutual mission / which you abandoned». Medeia: tragicamente. Disseram-me que isso não era, necessariamente, a Medeia: que era só o fim de um amor cantado por uma mulher mais velha, por uma mãe. E, sim, isso é verdade. Mas todo este vocabulário: bond, potion, family, mission. Foi com estas palavras, e com tinta tão preta como aquele lago, que o casamento entre o Jasão e a Medeia se fechou. Ainda por cima, na sessão da semana passada eu tinha posto a tocar um pedacinho de uma ópera barroca francesa, que o mesmo amigo ali de cima me tinha dito para ouvir, a Médée de Marc-Antoine Charpentier, e, a certa altura, o Jasão (nada disto está no Eurípides: é o barroco a dizer que tudo é guerra e tudo é amor) canta «que je serais heureux, si j’étais moins aimé», que feliz eu seria se fosse menos amado, se a Medeia me amasse menos, com mais abandono e resignação, com menos fúria. E vem a Björk, trezentos e tal anos depois, e canta «did I love you too much?», como se estivesse a responder àquele Jasão do século dezassete. Ia mostrar na última terça, durante a sessão, o vídeo da Black Lake, mas a canção tem dez minutos e, à última hora, decidi não o fazer. Podem vê-lo aqui, ou ouvir aqui a canção. Aparentemente, alguém perguntou à Björk por que é que a canção era tão longa (o descaramento), e ela respondeu: «It’s like, when you’re trying to express something and you sort of start, but then nothing comes out. You can maybe utter five words and then you’re just stuck in the pain. And the chords in-between, they sort of represent that. (...) We called them “the freezes”, these moments between the verses. They’re longer than the verses, actually. It’s just that one emotion when you’re stuck. It is hard, but it’s also the only way to escape the pain, just going back and having another go, trying to make another verse». E essa, curiosamente, é a estrutura da tragédia grega. As personagens falam e, depois, o coro canta, como um gelo que queima, que limpa o ar: antes de chegarem outras personagens, e começar a próxima ronda.
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5. Tenho mostrado, nas sessões, algumas cenas de duas versões da Medeia (sobretudo): os filmes de Pier Paolo Pasolini e de Lars von Trier. Em 1969, Pasolini foi buscar Maria Callas para a sua Medeia. É o único papel de Callas no cinema. Mas ela, cinco, dez anos antes, deixara, para todos os efeitos, de cantar: nem a voz que fala no filme é a dela, porque está uma atriz italiana a dobrá-la. («Quem sou eu sem a minha voz?», escreveu Callas numa carta à irmã.) Na verdade, isso (a voz, ou a força de Callas) não interessava particularmente a Pasolini. Callas está ali só como rosto, como olhar triste: como doença. Ou então: como mágoa e como vingança (pedras verdes nos olhos). O rosto de Callas, ali, muitas vezes em enormíssimo plano, é quieto: como uma máscara de cena. «Eis uma mulher», diz o próprio Pasolini, «num sentido a mais moderna das mulheres, mas nela vive uma mulher muito antiga – estranha, misteriosa, mágica, com conflitos interiores terríveis». O pior (ver o ponto 1) é quando eles, os conflitos, mal se veem no rosto: ou só se veem à custa de uma grande atenção, como se já soubéssemos, à partida, o que íamos, ou o que queríamos encontrar. João Oliveira Duarte, no livro que escreveu sobre o realizador, publicado pela BCF, diz que «[n]uma carta a Maria Callas, Pasolini fala de “uma leve angústia, pouco mais que uma escuridão» (um lume distante nos olhos: como o sol filtrado pela boca de uma caverna, fundo como o mundo todo lá fora) «e, portanto, invencível”». Que terrível conclusão. Os olhos de Callas, com esse fogo chato, obsessivo, têm o mesmo brilho das jóias que a sacerdotisa Medeia carrega ao pescoço: pedras falsas, ouros de alquimista. Contra este rosto de flor presa na pedra, um rosto-substantivo, a Medeia de Lars von Trier (a atriz Kirsten Olesen) é uma série de verbos: o fogo está-lhe nas mãos, no colo sem brilhos, na cara dura, no cabelo fechado no lenço. Contexto: em 1988, von Trier pegou num argumento que Carl Theodor Dreyer (o do Jeanne d’Arc, de 1928) tinha escrito: uma versão da Medeia, que, por esta ou aquela razão, nunca chegou a filmar. A partir desse texto, von Trier fez o seu filme e a sua Medeia: lógica como os ciclos da natureza. Mas: não devia estar sempre zangada, a Medeia? Não devia dançar e rodopiar de engenho e de bruxedo? Não devia ser como uma daquelas máquinas obsessivas, de uma tarefa só: uma máquina só de vingança? A cena em que o rei Creonte vai dizer a Medeia que ela tem de se ir embora de Corinto, que é impossível ela ficar ali, von Trier filma-a num pântano, ou num terreno alagado de uma água baixa. Medeia está de volta de uns arbustos secos, ramos só e bagas. Abana-os, as bagas caem à água, e Medeia recolhe-as, meticulosa, na cova da mão. Creonte chega numa espécie de palanquim, aos ombros dos escravos, mas, eventualmente, tem de descer, tem de pôr os pés na água. Afinal, estamos em casa de Medeia, uma casa-água-nevoeiro: e para a obrigar a sair, para lhe dar ordem de expulsão, para exilá-la do seu reino, Creonte tem de sujar os pés, inevitavelmente. Medeia não pára, nunca, o que está a fazer: continua a apanhar aquelas bagas. Sabemos, ou suspeitamos, o que vai fazer com elas depois de as esmagar: ela, esperta nos saberes e nos usos da magia, esperta nos frutos do fogo, esperta nas respirações da terra e do ar. Vai ser um vento que desarruma tudo. E, ao vê-la ali, a Medeia de von Trier, de joelhos, seca como aqueles ramos, dura da terra e mole da água, sólida e líquida e gasosa (neta do Sol), não consegui deixar de pensar na Björk, preta de luto, nas pedras ásperas da Islândia (aquelas pedras que souberam esperar e arrefecer), a apanhar cogumelos do chão para os usar nas canções: como flores, como mau-feitio, como vida que brota da terra. How Scandinavian of them.
6. [freeze]
Boa semana,
r.