A Biblioteca Nacional editou nos anos 80 um livro, parte antologia parte catálogo de exposição, sobre três poetas do Surrealismo português (António Maria Lisboa, Mário-Henrique Leiria e Pedro Oom). A capa é das coisas mais preciosas que já vi: a reprodução de um mapa de animais-constelações e, a toda a volta, a moldura «Quando o nome de toda a criatura seja mais do que número e figura».
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Estou desde a Páscoa a querer escrever sobre um livro, mas por esta e aquela razão acabei por não conseguir fazê-lo mais cedo (resumo dos últimos tempos, estou a trabalhar nisso). De qualquer modo, como tenho vindo a comentar nestas cartas, o tempo este ano anda meio confuso, lento quando o queremos rápido, rápido quando o queremos lento (o que provavelmente significa que sou eu e não o tempo), e ainda agora, em maio, acabámos de inaugurar a exposição pascal de miguel bonneville gemido sobre as pedras – com uma linda folha de sala que só podem ler na livraria –, por isso talvez seja sempre dia de acertar os passos.
A não edições (que espero que já conheçam, principalmente mas-não-exclusivamente se se interessam por poesia portuguesa contemporânea, aquela que é mesmo mesmo contemporânea) editou recentemente o primeiro livro de poesia em português da autora Isadora Neves Marques. Antes já lhe conhecíamos o título em inglês Sex As Care, and Other Viral Poems (2020), publicado pela pântano books, editora da própria com Alice dos Reis. Antes e entre os próprios livros e os outros que editou (de CAConrad, Odete, Serubiri Moses), conhecemos-lhe, claro, os filmes, provavelmente a sua atividade principal: Semente exterminadora (2017), A mordida (2019), Tornar-se um homem na Idade Média (2022) e As minhas sensações são tudo o que tenho para oferecer (2024). Estes títulos aqui assim interessam pouco, mas ajudam-nos a compreender como o vocabulário da artista é coeso, circula sem grandes problemas entre o cinema, a poesia e o ensaio.
A campa de Marx (2025) apresenta-se à pessoa leitora como uma novidade em dois sentidos, o seu primeiro de poesia em português e o seu primeiro editado com o nome Isadora. Eu sei que vai sempre haver pessoas, mesmo algumas que poderíamos ler como LGBT, que consideram que qualquer epíteto que venha a seguir a literatura só a menoriza, calha no entanto eu achar que isso não é um defeito, que não é melhor ou pior um livro ser sobre gatos ou sobre cruising, e neste caso A campa de Marx é inequivocamente um livro de poesia escrito por uma pessoa trans. E deixem-me dizer-vos que é do melhor que a poesia portuguesa com essa característica biográfica já teve: sabe usá-la, ficcionando-a, trabalhando-a, dando-lhe forma. Quando percebemos que essas palavras (os adjetivos, os epítetos, os apostos) são meramente descritivas e não pretendem prescrever ou limitar coisíssima nenhuma (até porque leitura não empata leitura), encontramos nelas a potência de nos ajudarem a criar pontes, pontes entre esta e aquela pessoa, entre este e aquele livro, as tais «referências» dos últimos 150 anos que ando a ler na aberta e, este ano, também em Lisboa («Mas será de facto uma derrota / quando, após século e meio, a escrita de um homem / continua a ser capaz de nos unir?»).
Em Portugal, por exemplo, houve uma altura, mais precisamente 2020, em que «livro de poesia de pessoa trans», publicado por uma editora generalista, significava apenas André Tecedeiro, e foi importantíssimo que a sua obra desde 2014 (espalhada por editoras independentes, antes e depois da transição) tenha sido aí compilada, na antologia A axila de Egon Schiele: acima de tudo, fez com que chegasse a um público maior que ainda não conhecia a poesia do André. Uma poesia de forma breve, simples, no melhor e mais acessível sentido que estas palavras possam ter; digo sempre isto: capaz de pôr a ler quem acha que não gosta de poesia. Logo no ano a seguir, tivemos o primeiro livro da Odete, The Elder Femme and Other Stone Writings. A «elder terrible» lançou um objeto oposto ao do André: poemas longos, dramáticos e ensaísticos, maioritariamente em língua inglesa. Isto, em si, já era uma bênção, já mostrava que duas pessoas trans que escrevam poesia em Portugal não são demasiadas, redundantes, de tão diferentes e complementares. Claro que muitas outras pessoas trans binárias e não-binárias têm conseguido escrever e publicar em Portugal, antes e depois destes dois exemplos, e não só poesia, pesquisem Alice Azevedo, Aurora, Cru Encarnação, Freda Paranhos, Hilda de Paulo, Lara Crespo, Maria João Vaz, Paulo Pascoal, p. feijó, Rafa Jacinto, Ritó Natálio, Rute Bianca, Salomé Honório: a diversidade de temas e estilos que vão encontrar não é menor (se calhar até é maior) do que se juntassem uma dúzia de obras de temática lésbica ou de temática gay.
Ainda assim, há coisas que encontramos como distintivas da experiência destas pessoas. E isso une-as. Arriscaria dizer que a Isadora não foge, não tem por que fugir, dessa tradição, é de facto um livro com poemas que também falam da sua transição, e, de resto (como já disse, em relação a outro assunto, sobre a antologia Sinais de Saturno da mesma editora), de pontos de vista que raramente vão parar à poesia portuguesa, ou, neste caso, mesmo às «biografias de transição» («Observaste as minhas aréolas crescerem de mês para mês, / a minha pele ficar mais suave, as minhas ereções desaparecerem.»). Poderíamos perguntar-nos se é importante, para nós pessoas que leram ou vão ler este livro, saber isto, que se trata de um primeiro livro depois de uma transição, provavelmente não para quem acha que questões de orientação sexual e identidade de género são do foro da «vida privada», mas a verdade é que, mesmo que não saibam rigorosamente nada sobre o livro e a autora, alguns destes poemas são sobre o que são e não há como mudá-lo: a alteração das marcas gramaticas do masculino para o feminino no primeiro poema, a recorrência do nome morto (o que se torna interessante também no sentido de legitimar diferentes abordagens ao tema: umas pessoas decidem não partilhá-lo, outras estão confortáveis com isso em determinados contextos).
Como outros bons exemplos do género «diário de transição» (vejam o Apartamento em Urano de Paul B. Preciado), o livro de Isadora tem isto e muitas outras coisas porque como não? A autora fala de si (e o contrato autobiográfico está mais do que assumido, podem ouvir a apresentação do livro em Lisboa que está online aqui) e, falando de si, fala também de família, de amizade, de fé, de morte, de saúde, de ecologia, de classe social, de política, até vemos alguns dos seus filmes por aqui. No fim de tudo, e não sem um certo sentido de humor que muito aprecio («Não sou a mesma / mas também nenhum de vocês.»), percebemos que o tema da transição é menos «sobre um outro» do que poderíamos presumir inicialmente – nós, que ainda nos vamos identificando ou ignorando o género que nos foi designado à nascença, também mudamos, todas as pessoas estão sempre a mudar (a morrer), biológica, cultural e socialmente.
Portanto, sim, obras (ou, se quiserem, livrarias) temáticas podem parecer um corredor estreito (e se calhar até estou a aludir a um poema deste livro), mas têm portas para zonas abertas: lá cabem todas as pessoas, desde que reconheçam a passagem. Pensem nisso como uma prova à nossa capacidade de leitura, portanto de empatia. A campa de Marx é lindíssimo e não li recentemente outra poesia portuguesa contemporânea que tão claramente merecesse esse epíteto, que pode parecer fútil, mas para mim é da maior importância – os epítetos também se merecem. Deixo-vos com quatro poemas de Isadora Neves Marques, quando voltar será junho:
3.
Fingi um certo prazer, procurando disfarçar
o meu medo do mundo. Um mundo que também te incluía.
Medo da normatividade. Medo da longa
duração do amor. Medo de ter de reaprender a calma
dos silêncios. E a necessidade de partilha.
Nós, libertas de identidade, mas trancadas no plural.
Sabia bem acordar ao teu lado. Ainda assim
era difícil negar o peso de um enredo involuntário.
Oferecemos as mãos uma à outra, unidas pelo desprezo
a este fim de mundo onde, por mero acaso, acabámos por crescer.
A falsa ideia de que casa é o lugar onde nascemos.
Na verdade, são as amizades quem nos tenta convencer a ficar,
na procura de dar um significado original a um sítio aleatório.
Embora a totalidade dos meus pensamentos estivesse em ti,
e me dissesse isso ser suficiente, sentia-me traído por ter regressado.
Agora caminho ao longo do rio
intoxicado por oxitocina, o meu organismo
tomado por um circuito exponencial de dopamina e norepinefrina.
Masturbo-me demasiado. Imagino-te a fazer o mesmo, na distância
de uma ilha com mau tempo, a percorrer longos percursos
circulares nas extremidades; as penetrações
e curvaturas inesperadas que encontraste em mim.
Pensando bem, tenho tido sorte. Tenho sido quem sou.*
Sobre pessoas que viveram muitas vidas e pessoas que permanecem as mesmas
Leio um ensaio
sobre pessoas que viveram
muitas vidas e pessoas
que permanecem as mesmasdesde a infância
Para alguns é uma perfeita
sequência de eventos
para outros mal chega a ser uma imagemClaramente, falsificar
uma memória
é um ato
de crescimentomal nos é dada
uma escolha
quando é pouco
aquilo de que nos lembramosTenho para mim que mudei
mas respeito
a continuidade
quando ma apontam*
Durante uma década
Sobrevivi à polarização do debateApesar das chuvas pesadas e das ondas de calor
O clima era de esperança –Desaparecer no coletivo
Era a utopia, mas uma utopia não passa disso mesmoUma forma literária
Que nunca chega a acontecer.Tínhamos visões e um discurso
ArticuladoMas boas intenções são facilmente iludidas.
Mundo e planeta não são sinónimos.*
Um espaço no centro da tua cabeça
Um espaço no centro da tua cabeça chama por ti;
há que preenchê-lo com amor. Tendo sido roubadas de tudo
o que tínhamos, as tuas manhãs são feitas de sonhos –do outro lado do Céu, dormes tranquila;
sem imagens, sem ação, a caminho
de um ambiente saudável, incluindo a chuva –um polvo segura-se à tua garganta;
numa terra estranha, o teu corpo não deixa de ser o mesmo.
Maturidade é apenas a juventude em mudança –as tuas premonições tornam-se realidade;
fé nos interstícios entre crenças,
o mundo em suspenso espera por ti.