Acabo de chegar de mais uma sessão em Lisboa das conversas sobre 150 anos de referências LGBT na literatura portuguesa. Sempre que lá fico a dormir em casa do Tiago e do Daniel, gosto de ver os post-its espalhados pela casa, na porta do quarto de banho, na cozinha, na estante da sala. Hoje deixo a carta em branco, mas colo-lhe em cima seis desses, recados muito simples para este mês:
1. Lê uma vez por dia, em silêncio, o novo Pouco a pouco de Amanda Gorman, em tradução de Alice Neto de Sousa, com ilustrações de Christian Robinson, edição da Orfeu Negro.
2. Se estiveres por Lisboa no Santo António, vê no Variedades As mulheres que celebram as Tesmofórias de Aristófanes, na versão de Odete com Ângelo Custódio, Áquila (aka Puta da Silva), Cru Encarnação, Malia Imaan, Mário Coelho e Tita Maravilha.
3. A Marcha do Orgulho de Lisboa é este sábado, dia 7, e a Marcha do Orgulho do Porto é no sábado do aniversário da aberta, dia 28. Só em junho, podes ainda juntar-te a marchas em Barcelos, Aveiro, Caldas da Rainha e Famalicão.
4. Apaixona-te pelo bigode e pelas cores do António Palolo.
5. Lembra-te que Mário Cesariny escreveu «barbeia-te com ódio a barba ajuda» (1957) e que António José Forte escreveu «hoje não é um dia para fazer a barba» (1960) e que Herberto Helder escreveu «¿que interessa fazer a barba se é tudo para cremar» (2015). Lembra-te que Cesariny também escreveu «antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa» (1957) e que Ruy Belo escreveu «Eu tive-te na boca e não te conhecia» (1962). Lembra-te que Álvaro de Campos escreveu «Eh-lá, eh-lá, eh-lá» no primeiro Orpheu e que Mário de Sá-Carneiro escreveu «Eh-lá! Eh-lá! Eh-lá!...» no segundo Orpheu, ambos em 1915. Lembra-te que Sá de Miranda escreveu «O sol é grande, caem co’a calma as aves,» (1595) e que Gastão Cruz escreveu «mas sem sol grande as aves não se movem / nem já não caem com a calma as aves» (1969) e que Luiza Neto Jorge escreveu «já caem com a calma as avestruzes» (1973) e que Fernando Luís Sampaio escreveu «O casaco cai-te co’a alma» (2000) e que Manuel António Pina escreveu «Caem co'a calma as palavras» (2001) e que Adília Lopes escreveu «O Sol é grande. Caem co’a calma as aves. Isto é sem cura.» (2016) e que, um dia, o david me disse «caem co'a calma os cabelos». Lembra-te que Al Berto escreveu «a mão esquerda masturba enquanto a direita escreve com destreza» (1982) e que Herberto também escreveu «A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela, / em baixo a outra mão / mexe num charco branco.» (1988). Lembra-te que Sophia de Mello Breyner Andresen escreveu «Deus escreve direito por linhas tortas / E a vida não vive em linha recta» (1997) e que Adília também escreveu «Desconfio / de quem escreve / direito / por linhas direitas» (2002). Lembra-te que Fernando Alves dos Santos escreveu «porquanto nasço contigo num mesmo berço» (1954) e que Cesariny também escreveu «Tu estás em mim como eu estive no berço» (1957) e que Luiza também escreveu «Um dia acorda-se e o abismo é berço» (1989). Lembra-te que António Ramos Rosa escreveu «Ele escreve. O seu desejo é o desejo / de tornar habitável o deserto.» (1978) e que José Miguel Silva escreveu «Quem não ama o seu deserto / pode amar o colectivo?» (2014).
6. Sempre que for preciso (fica ao teu critério), faz uma pausa de três minutos para ouvir a música «Cordão umbilical» de Lara Li com letra de Ana Zanatti. Canta tão alto quanto for necessário. Não encontras a letra em lado nenhum online, mas eu tentei transcrevê-la aqui para ti (avisa se achares que me enganei em alguma parte):
altamente complicado
isto de vir embrulhado
numa bolsa de cristal
primeiro golpe, hesitamos
segundo golpe, choramos
ai dói tanto, faz-nos malaltamente complicado
isto de estar amarrado
ao cordão umbilical
não dá para saltar barreiras
para fazer milhões de asneiras
prende muito, faz-nos malvamos dar todos o salto
vamos todos arriscar
vamos dar todos o salto
vamos, temos de acordar
vamos voar muito alto
dar um salto pelo ar, vamos darvamos entrar noutra esfera
vamos todos mergulhar
vamos, que o tempo não espera
vamos já sem hesitar
vamos vamos, quem me dera
dar um salto pelo ar e voaraltamente complicado
altamente limitado
não há um sim nem há senão
que rasgue a terra
que rompa o chão
altamente limitado
altamente complica-a-a-do