Distância, vastidão
«You can remove all elements from an image but remove the light and it is lost.» (Stanley Schtinter)
1. No início deste século (o ano nunca se diz qual é), a escritora alemã Esther Kinsky viu-se numa cidade na ponta-longe da Hungria, quase-Roménia: lá, onde a terra é toda plana e o tempo não passa. Nessa cidade, havia um velho cinema: mas estava fechado há doze anos. Acontecera-lhe o que aconteceu a muitos cinemas um pouco por todo o lado nos últimos trinta, quarenta anos: foi como se, de um dia para o outro, as pessoas se tivessem esquecido de como funcionava um cinema, ou já não soubessem para o que é que ele servia. Esther Kinsky apaixona-se pelo velho cinema, ou talvez pela ideia do velho cinema: e decide comprá-lo para o reabrir. O livro (chama-se Seeing Further) conta a história dessa tentativa. Chamo-lhe já tentativa: porque ela vai falhar. (Por vários motivos: o livro é sobre a sala de cinema, como ideia e como projeto de comunidade, mas também é sobre aquela planície a desistir, a recusar-se a ir para trás ou para a frente.) Entretanto, comecei a ler outro livro sobre as razões pelas quais (ainda) vamos ao cinema. Portanto, esta semana, sempre que escrever a palavra cinema, estou a referir-me ao lugar, ao edifício: não à linguagem, ou à coisa mostrada.
2. Esther Kinsky começa o livro a distinguir o quê e o como de ver, de uma forma mais geral, mas, sobretudo, de ver um filme no cinema: o filme é o quê, aquilo que vamos ver; o cinema é o como, as circunstâncias, as condições materiais que alteram o gesto de ver. «In the past century no location was as important for the how of seeing, for contemplating the place that a viewer assigns themself or takes, as the cinema – as a venue, as a space.» Depois escreve esta frase, brutal: que põe o lugar do cinema em perspetiva quando comparado com a praça, o teatro ou a igreja. «This space, whose relevance and significance did not even withstand a century, has been closing further in recent decades.» Um século só: agora fechamo-nos cada vez mais em casa, para ver filmes e não só. «The collective experience facilitated by this space is disappearing along with it, as is the more-or-less emphatic joy of taking part in these experiential possibilities, and this loss, whether mourned or not, deserves to be described and merits consideration. The cinema was the stage of a century. Today people differ in their relationship to this venue.» Vem, então, a terceira pergunta: depois do quê e do como. «Why the cinema? After all, films are available in other formats; the black box of the auditorium is considered a necessary venue for seeing by only few, and some even brush off the cinematic experience as an elitist pastime. As if the only thing that mattered any more was the what. And no longer the how.»
3. O problema é que não são completamente claras as razões pelas quais Esther Kinsky decidiu recuperar aquele cinema. Talvez recuperar seja a palavra-chave: vimos ali em cima que ela relaciona a falta de cinemas com a ideia de uma perda. Logo no início do livro, ela escreve que «[e]ven those who never visit the cinema anymore will still remember particulars of the experience, of the place». Estamos a falar, portanto, de devolver essa experiência a quem já não a tem, e (para mim) é essa nostalgia que mata a ideia antes de ela nascer: porque entretanto tinham passado doze anos. O cinema (espaço e ritual) tinha de ser explicado às pessoas de novo. Nos últimos sete anos, o Porto voltou a ter cinemas na Baixa, cinemas que tinham fechado e que reabriram: primeiro o Trindade, depois o Batalha. Ambos têm propósitos e missões muito diferentes: é assim que deve ser. Ficam os dois a dez, vinte minutos a pé da livraria: posso acabar o meu dia de trabalho e ver um filme antes de ir para casa. Mas o facto de eles terem sido devolvidos à cidade, por si só, não é suficiente para lhes justificar a reabertura, ou para convencer as pessoas de que eles são necessários: ali e com aqueles filmes em cartaz. Há uma geração inteira que cresceu sem cinemas na Baixa do Porto, pessoas para quem o cinema não é algo que pertence ao tecido da cidade. (Que tecido é esse, e quem o vive realmente, é outra questão: tão ou mais importante.) Mais: para muitas pessoas, os cinemas só existem naquele intervalo em que os filmes não podem ver-se em mais lado nenhum: porque as salas que têm perto de casa não mostram os outros filmes, os que não acabaram de estrear.
4. A minha semana de ter ido ao cinema conta uma história diferente. Senão vejamos. No sábado, revi o Les diaboliques (Henri-Georges Clouzot, 1955), que é um filme de que gosto muito (tanto, demasiado) e que queria ver no meio de pessoas que ainda não o tivessem visto. No domingo, fui rever o Godzilla (Ishirō Honda, 1954), porque o filme faz agora setenta anos e há uma nova cópia, restaurada, para o comemorar. Havemos de falar de restauros: da sobrevida dos filmes e dos contextos em que eles regressam à exibição comercial: mas não vai ser hoje. Na segunda, não vi filme nenhum. Na terça, fui ao cinema sem saber o que ia ver: era um filme-surpresa. (Não vos vou dizer qual era: tivessem ido.) É precisamente sobre isso o livro que ando a ler agora: sobre o gozo de não se saber que filme se vai ver: sobre abdicar da parte da escolha: sobre o como absoluto de ver filmes, e o porquê. (Chama-se The Liberated Film Club.) Na quarta, vi um filme que nunca tinha visto, o primeiro desta semana: The Man Who Left His Will On Film (Nagisa Ōshima, 1970). Fiquei a pensar (infelizmente) em apresentações, em folhas de sala, e numa ideia que sigo sempre que escrevo sobre filmes ou outras coisas: que a forma e o tom do texto deve espelhar a forma e o tom da coisa sobre a qual se escreve: que é essa a primeira função de um texto desses: preparar-nos formalmente, estilisticamente, para o que vamos encontrar. E ontem fui rever o The Substance (Coralie Fargeat, 2024), que já tinha visto em casa, mas de que gostei tanto (ando a dizer a toda a gente que é o melhor filme do ano) que queria revê-lo no cinema, no dia em que estreava em sala. Acho que ainda gostei mais dele da segunda vez. Em todas estas sessões, as casas estavam cheias.
5. Olhando para esta minha semana de ver filmes, percebo uma coisa muito simples. Cada vez mais (porque é uma coisa recente), o cinema é o lugar onde eu vou rever filmes de que gosto muito: através do olhar das outras pessoas. No ano passado, em Barcelona, tínhamos um par de horas para queimar antes do voo de regresso: e fomos à Filmoteca ver o The Wizard of Oz, que eu nunca tinha visto no cinema. Sentada mesmo à minha frente estava uma criança, não devia ter mais de seis anos: e ela viu tudo no filme com um tal maravilhamento, e os pais chamavam-lhe a atenção para tudo com tanta doçura e tanto cuidado, que eu não me vou esquecer daquela sessão, do espanto daquela criança. Sobretudo para mim, que nunca me lembro de nada, ver um filme no cinema é ancorá-lo em todas as outras coisas que acontecem ali dentro: é ter como segurá-lo melhor na memória. Não quero dizer com isto que o cinema é o único lugar para se ver ou rever filmes, de maneira nenhuma: são aos milhares os filmes que eu nunca teria visto se não os tivesse visto em casa. O que o cinema faz, porque é um intervalo no tempo e no espaço, porque temos de ir até lá e depois voltar para casa, e porque temos toda a nossa atenção fechada dentro da sala, é, ao mesmo tempo, focar e dividir o nosso olhar, no filme e nas outras pessoas, e tirar-nos dos limites do nosso corpo. E, sim, tenho perfeita noção de que isto (de ir ver filmes fora de casa quase todos os dias) é o resultado de vários privilégios: o de não ter de pagar por todos esses bilhetes (de isso não ser uma razão para eu decidir não ir), o de poder organizar o meu tempo livre, e, talvez o mais importante de todos, o de viver numa cidade em que essa possibilidade (essa variedade) existe.
6. E naquela cidade, lá no fim da Hungria? Um verão, no fim de junho, o cinema reabriu. Em setembro, voltou a fechar: e foi de vez. Num dos dias em que estava a casa vazia (foram muitos nesses três meses), Esther Kinsky pergunta a Józsi, o projecionista, que já era o projecionista antes de o cinema ter fechado: «Why doesn’t anyone come to the cinema? (...) He could not have been the only one who still had memories connected to this film, the laughter of another time, mixed with dreams and hopes still in his mind. Józsi shrugged his shoulders. Maybe people want to be alone with everything they miss. They sit at home, thinking about what they don’t have. We used to have this cinema, it was here, it was a complete place. All around it many things were lacking, but the cinema was there». Um dia (um dia longo, gradual), as pessoas convenceram-se de que não precisavam de um lugar fora de casa onde ver filmes: e o cinema fechou. Depois disso, nunca mais viram filmes assim, no meio de estranhos que conheciam de vista. Quase no início do livro, que é um longo ensaio sobre as coisas que fazemos, ou que fazíamos, todos juntos, e sobre a privatização dessas experiências, Esther Kinsky conta que «[i]n my old Russian and Polish language textbooks, the cinema played an even larger role than the factories, universities and outpatient clinics that also came up in many exercises. There was hardly a dialogue or a lesson in which the cinema was not visited, exited, missed or espoused under various grammatical pretences». O cinema era o lugar onde a vida toda se cruzava, «the women wearing skirts that recalled the fashions of the fifties, the men in suits, and all of them carrying briefcases, to suggest that everyone had rushed directly from the university, the outpatient clinic, or the factory to catch a film – because back then (...) the cinema was still a part of life (...)». Umas linhas mais à frente, Esther Kinsky faz uma pergunta muito simples, mas muito complicada, porque o que ela está a perguntar é: o que é que fazemos das nossas vidas quando não estamos a trabalhar: e porque é que, cada vez menos, damos o nosso tempo livre a uma ideia de coletivo e de espaço público. O que ela pergunta é: «Where do they go in today’s foreign-language textbooks?». Se calhar, não vamos a lado nenhum: porque temos tudo a um braço de nós.
Boa semana,
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