1. Elaborar um plano é saber deixar brancos a revelar (se preciso) com o tempo, acho que fazer performance me ensinou isso. O que fica planeado tem de ser possível-em-si, mas também é importante aceitar que nunca nada acontece exatamente como no papel porque ensaiamos fazendo.
Quando a livraria abriu, e por muito que tenhamos assumido desde início que era por definição um espaço em transformação, eu senti o desconforto de algumas pessoas pela presença nua das paredes brancas. Isto não é uma crítica, sei que quando algo começa há sempre alguma expectativa, uma imagem mental, fantasia que se projeta. E esse desconforto foi logo desaparecendo quer porque se habituaram quer porque começámos a ocupá-las com pequenas exposições. Podemos, no entanto, questionar o porquê de o branco ser lido como vazio, desperdício de espaço (ou dinheiro, numa lógica capitalista).
(Não vou fazer uma história do branco porque para isso lêem o novo volume de Michel Pastoureau que a Orfeu Negro publicará este ano, mas gosto mesmo muito da cor e sei que culturalmente as coisas vêm sempre com muitos sentidos atrelados. Um exemplo: uma vez, fui a pé para casa porque não tinha dinheiro para pagar a viagem. Ia com uma camisa branca, limpa e passada a ferro, colarinho apertado. Alguém me parou no caminho e pediu-me dinheiro. Eu sorri e disse que não tinha. A pessoa não acreditou, comentou a minha camisa... As coisas têm sentidos.)
Talvez o vazio incomode porque assumimos que é fruto de uma falha, que ele está lá momentaneamente (é uma fase) por falta de coisas ou ideias. E se o branco for não o que não está, mas o que está? Aliás, neste contexto muito específico (todos os símbolos são circunstanciais), por que há de o branco representar o vazio? A luz branca é a síntese das cores do espectro, o ruído branco a síntese das frequências sonoras. Claro que esta lógica também tem os seus problemas, os seus perigos, mas um passo de cada vez: porquê ler o branco-em-si como ausência e não como um campo em potência onde tudo pode existir, se concretizado? Não a nostalgia do que falta, mas a alegria breve de tudo o que ocupa esse espaço.
2.
3. Esta é uma obsessão muito particular. Tenho um enorme vocabulário emocional associado ao branco, arquivo todos esses tons: a mancha de flúor no sorriso do primeiro amor, um lençol esticado no chão de uma praça da cidade, o primeiro e último cigarro que fumei, deitando a cinza num copo de água para a beber no fim, o hábito que usei várias vezes em espetáculos e a banheira em que me deitei em público, num deles. E depois há a página 3 da minha tese – mas isso é uma história que fica para outro dia. Ou a tinta branca com que pintei toda essa tese numa performance, nove meses depois de a defender. E ainda esperma de doze homens, naquela performance em que lhes pedi que me mandassem fotografias suas, a que chamei Branco no branco contra a obscuridade (títulos roubadinhos ao Eugénio de Andrade, que podem ler em Portugal editados pela Assírio & Alvim):
«Fatos ou conjuntos brancos em Suddenly, Last Summer de Joseph L. Mankiewicz com Tennessee Williams, Morte a Venezia de Luchino Visconti com Thomas Mann e Pink Narcissus de James Bidgood; o branco do look náutico em Fireworks de Kenneth Anger, Taxi zum Klo de Frank Ripploh e Querelle de Rainer Werner Fassbinder com Jean Genet; t-shirts brancas, decote redondo, em v ou cavas, em Un chant d'amour de Genet, Hustler White de Bruce LaBruce e A Single Man de Tom Ford com Christopher Isherwood (mesmo as de Marlon Brando em The Wild One e de James Dean em Rebel Without a Cause por referência de outros como Scorpio Rising de Anger); t-shirts brancas molhadas em De vierde man de Paul Verhoeven, Les roseaux sauvages de André Téchiné e American Beauty de Sam Mendes (onde o branco está a um passo do nu – o algodão é mais passível de ficar transparente quando molhado); roupa interior branca, cuecas na maioria, em A Bigger Splash de Jack Hazan com David Hockney (que viria a inspirar cenas em La mala educación de Pedro Almodóvar e Milk de Gus van Sant), Johan de Philippe Vallois e Love Is the Devil de John Maybury com Francis Bacon.»
(Uma adenda a isto que escrevi em 2016, pensando no homoerotismo masculino dos 100 anos de cinema até aí, através dos seus códigos e roupas: vejo, hoje, que esta representação tem também o lado perverso de ser white, nesse outro sentido menos interessante de tudo ser pouco abrangente na amostra que faz de corpos não-cis, não-brancos, não-magros, não-musculados, não-jovens. Aqui estão aqueles problemas, aqueles perigos que referia atrás e que ajudam a contar a história daquele século. A questão é que uma coisa não tem de forçosamente levar à outra. Cabe-nos a nós continuar hoje esta história.)
4. Quando, em 2017, fiz um ciclo de performances sobre identidade e intimidade masculinas a que chamei O livro branco (título roubadinho ao Jean Cocteau, que podem ler em Portugal editado pela Sistema Solar), um dos exercícios foi construído com Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar. Eu encontrava-me sozinho com uma pessoa numa casa vazia e mostrava-lhe um mapa do Porto e apontava o sítio onde vi pela primeira vez o Marcelo, onde o Pedro me puxou os pelos das pernas de copinho-de-leite, onde dei o primeiro beijo na testa ao Ricardo. A cidade aí não era só granito, era também uma geografia emocional feita de fragmentos de memórias, associadas a homens muito específicos. Já não me lembrava, mas fui reler o guião e, depois de apontar para o mapa, mostrava alguns sinais que tenho no corpo e pedia que a pessoa me mostrasse os seus.
Passaram 6 anos e, claro, hoje muitas outras histórias poderia contar e em pontos diferentes da cidade dos de então. Por exemplo, amanhã temos na aberta a apresentação de um livro de contos de Cadu Cinelli, Percursos afetivos. Cadu é contador de histórias e andante de bicicleta. Não sei o que veio primeiro, mas hoje isso pouco importa. As histórias que nos traz são de pessoas das cidades brasileiras por onde passou, talvez reais, talvez inventadas, ensaiando caminhares: uma pessoa que toma banho numa fonte fantástica, mulheres que se apaixonam em viagens de autocarro, crianças que brincam na rua. Não consigo não pensar nas Memórias de Adriano que é tudo menos o que se poderia esperar do livro – e se calhar ainda bem. Não peguem nele a achar que vão ler apenas uma descrição do amor de Adriano e Antínoo, o livro não é isso, ou só isso. É sobre as histórias que queremos deixar escritas depois de perdermos alguém, é sobre cidades que foram construídas com alguém em mente. E essa combinação de memória afetiva, geografia e urbanismo é algo que me agrada.
5. Na sequência de filmes sugeridos no último ponto, um foi feito a partir da minha peça preferida do Tennessee Williams, Suddenly, Last Summer. O Ricardo falou-vos dele na primeira carta de todas por causa da Hepburn que faz de mãe do protagonista – que nunca aparece em cena porque morreu e agora só existe contado pelos outros –, mas deixem que eu vos conte à minha maneira. (O que estiver entre aspas é da tradução editada pela Relógio d'água como Subitamente, no verão passado.) Sebastian era poeta. Escrevia um poema por ano, mais precisamente por verão. No seu último verão, nada. Diz-se na peça que ele desistiu de escrever o poema e partiu com a prima para a Playa de San Sebastian, em Cabeza de Lobo. O topónimo espanhol é um pormenor deliciosamente macabro porque quem sabe esta história é a prima de Sebastian, mas a mãe dele gostaria que a dela fosse uma cabeça-de-lobotomia para que esquecesse o que viu de vez.
Os primos vão à praia e ele obriga-a a vestir «um fato de banho de uma peça só, feito de fio da Escócia branco» que a água torna transparente. Usa-a, é dito muito claramente, como isco para que os jovens reparem neles (nele, na verdade). Oferece-lhes dinheiro e esfrega-lhes na cara (excita-os com) uma mulher bonita. Depois, «num daqueles dias abrasadoramente quentes e brancos», vão almoçar a um restaurante perto. «O Sebastian estava branco como o dia. Trazia um impecável fato branco de seda shantung, um panamá branco e sapatos brancos, de pele de lagarto branco, de cerimónia! Ele (…) estava constantemente a passar pelo rosto e pelo pescoço um lenço branco de seda e a tomar uns comprimidos brancos».
Aparecem crianças a gritar Pan (a pedir pão ou a chamar pelo sátiro?), fazem-lhe uma serenata com instrumentos de lata que refletem a «intensa luz branca» da areia da praia. Sebastian chateia-se, está fraco, sai do restaurante. «Cá fora estava tudo branco. Um calor branco, branco e escaldante, escaldante e branco, (…) [c]omo se um enorme osso branco se tivesse incendiado no céu e a sua chama fosse tão intensamente branca que tornasse o céu e tudo debaixo dele branco também». As crianças perseguem-no rua acima. «O bando de crianças nuas perseguia-nos pela rua branca e inclinada sob o sol que era como o osso de uma fera gigantesca que se tivesse incendiado no céu!» (e, se não fosse claro desde o início da peça, aqui percebemos o quanto a classe social influencia o ponto de vista de Sebastian porque, de repente, os pobres são descritos como «monstrinhos» e «aves negras»).
Por fim, não há mais colina-acima por onde fugir, o poeta é encurralado e devorado – literalmente – pelas crianças famintas. «Já não se ouvia ruído nenhum, não havia mais nada que ver a não ser o Sebastian, o que dele sobrara e que parecia um grande ramo de rosas vermelhas embrulhadas em papel branco atiradas para o chão, despedaçadas, esmagadas! – contra aquela abrasadora parede branca...» No seu último verão, o poeta não escreveu. Ou antes, deixem-me ser rigoroso, deixou um caderno de páginas brancas. E se a tela em branco for não abstracta, mas absolutamente figurativa?
6. Uma escolha muito pessoal de seis curtas e longas da década de 1950, para terminar
, Un chant d'amour – A Song of Love (Jean Genet 1950)
, The Wild One (Laslo Benedek 1953)
, Last Spring (François Reichenbach 1954)
, Rebel Without a Cause (Nicholas Ray 1955) + o maravilhoso screentest
, Jocko de Paris – The Strange One (Jack Garfein 1957)
, Suddenly, Last Summer (Joseph L. Mankiewicz 1959).
E os muitos Portos que aportam no Porto? Já sinto saudades futuras dessas muitas cidades que cabem no Porto! E vocês fazem parte disso.
confundo-me sempre, nunca sei se o branco é a ausência de cor ou a soma de todas as cores... malditas aulas de físico-química em que me distraí!