1. Em 1908, Coelho Neto publica Esfinge. O livro abre-nos a porta da pensão onde vive «o formoso e excêntrico James Marian». Os restantes hóspedes aproximam-se na desconfiança que sentem por este estrangeiro: apesar de conhecer o mundo inteiro e gostar de música (o que indicia uma certa educação), não partilha com eles as horas de refeição, é calado, indiferente até. «Mas o que logo surpreendia, pelo contraste, nesse atleta magnífico, era o rosto de feminina e suave beleza», como uma «cabeça de Vénus sobre as espáduas robustíssimas de Marte». Os outros começam a tratá-lo como «Boneco», «manequim de cabeleireiro», «doente d'alma». Há um, no entanto, que com ele trava amizade (deixa-se cativar) e é a esse que um dia o andrógino pede que traduza o livro da sua vida.
Nesse livro-dentro-do-livro, ficamos a saber a origin story deste monstro. Duas crianças morrem na sequência de um atropelamento-e-fuga e Arhat (o Dr. Frankenstein desta história) recolhe o que sobrou dos seus cadáveres, o corpo do menino, a cabeça da menina, e com eles faz uma nova vida: James Marian (já tinham percebido o binarismo do nome, não já?). Mas esta ficção é menos científica do que mística e a espiritualidade oriental (ou a ideia que o ocidente dela tem) entra em jogo para explicar como aos pedaços de crianças ficaram presas auras com características masculinas e femininas. Foi isto que produziu o estranho fruto à nossa frente, condenado a viver uma vida trágica por o seu corpo ser um campo de batalha de duas forças inconciliáveis.
Se dentro do corpo do homem vencer a alma masculina, que, numa estrutura de heterossexualidade obrigatória, necessariamente se apaixonará por mulheres, tudo bem, bate a bota com a perdigota e ainda tem o bónus da carinha-de-menina que sempre concede um certo exotismo, pelo que, diz o texto, será um «íman da lascívia»; se, por outro lado, dentro desse homem vencer a alma feminina, que orbitará para os homens, tudo pior, ainda por cima será passiva, como sabemos, pela emulação da mulher; mas se nesse corpo colidirem as almas, empatadas, então tudo perdido. Esta colagem de biologia, psicologia, religião e moral é um exemplo concreto do que num determinado contexto seria o expoente máximo da estranheza (o não-binário, o pansexual, o transnacional, o politeísta).
Uma das piadas que partilhamos nas conversas sobre literatura na aberta é que o preconceito sempre foi interseccional: no século XIX, já com o apoio «científico» da psicopatologia sexual, a personagem homossexual nunca é apenas, por exemplo, um homem que sente desejo por homens, tem forçosamente de ser também (escolher algumas das seguintes opções) incestuoso, onanista, doente (física ou mentalmente), órfão, notívago, vampiro, travesti, ladrão, assassino, prostituto, assim como pode ser estrangeiro, assim como pode não ser branco, tudo depende do lugar (a língua, a cultura) a partir do qual a pessoa que escreve fala – e sempre que falamos dizemos mais sobre o nosso lugar do que sobre o do outro.
2.
3. A única coisa que eu sabia ao começar esta carta é que a sequência de filmes sugeridos no último ponto seria dos anos 40: portanto, muito cinema noir, crime e violência, mas, acima de tudo, vilões – ou homens do lado oposto ao do herói – que usam perfume ou lenços ou flores e fatos elegantes e parecem não ter família e se movem de forma estranha e falam com dicções estranhas para dizer tiradas espirituosas à Wilde. Em inglês, este é o estranho de strange, e também o estranho de foreign, às vezes o estranho de mysterious (como antes todos os romances do século XIX chamados «Os mistérios de...»), mas sobretudo o estranho de queer. É um código: o homem ou a mulher de outra orientação sexual ou de outra expressão de género como mau da fita (traidor de género e, por vezes, de classe).
Já sabemos que o monstro pode ser coisa ou animal, não-humano, desumano ou pós-humano, não se pode é confundir com o humano (que o nomeia). Mas o que liga o monstro finissecular a este dos filmes noir (muito diferentes na aparência) é que aqui, ainda que continue a ser diferente da norma, ele é capaz de ter dela e sobre ela o mesmo... charme (e isto é menos sexual do que social, apesar de os conceitos de «estranho» e «obsceno» – o que deve ser escondido fora de cena – não estarem assim tão distantes). Influencia; pior: desencaminha. Hannah Arendt, no seu livro sobre As origens do totalitarismo, passa por aí quando nota que «Proust descreve longamente como a sociedade, constantemente à espreita do estranho, do exótico, do perigoso, finalmente identifica o refinado com o monstruoso».
4. Algo é estranho porque nos apanha desprevenidos, não satisfaz a nossa expectativa; a estranheza é uma rutura no conservadorismo porque nos obriga a agitarmo-nos, mesmo que só num arrepio (o efeito do medo). Importa repetir, no entanto: «estranho» para quem e em que contexto?
O estilo noir está construído para que uma pessoa desconfie daquelas personagens, parte do pressuposto de que isso acontecerá, de resto, mas outra pessoa naquele tempo ou outra pessoa noutro tempo ou a mesma pessoa noutro tempo podem, por fim, olhar e estranhar novas coisas: o polícia corrupto demasiado violento para a posição de poder e responsabilidade que ocupa; a mulher hipersexualizada que acaba por não ter tanta agência assim numa narrativa que a quer domada e casada com o herói no fim. Dito de outro modo: a estranheza nunca foi só usada pela norma como forma de insulto às margens, a periferia tem também esse poder, o de virar ao contrário o espelho e questionar o padrão com o que é, para si, estranho.
Um exemplo triste e bonito: em 1936, o professor de uma escola pública americana, filho de imigrantes judeus fugidos da Rússia, viu uma fotografia do linchamento de dois jovens negros, pendurados de uma árvore, e escreveu como protesto o poema Bitter Fruit.
Southern trees bear a strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root
(...)
Scent of magnolia, sweet and fresh,
And the sudden smell of burning flesh.
Here is a fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for a tree to drop,
Here is a strange and bitter crop.
Inicialmente publicado no jornal do sindicato dos professores The New York Teacher, em 1937, e mais tarde num jornal marxista, este poema de Abel Meerepol viria a tornar-se a canção Strange Fruit, gravada dois anos depois por Billie Holiday.
5. Ouvi pela primeira vez a voz de Anohni em 2005. Sei exatamente qual a música, onde, como e porquê. Senti esse arrepio. Depois disso, ouvi tudo o que consegui encontrar da minha mãe (como já lhe chamei num texto há muitos anos), guardava mp3s de versões ao vivo, algumas nunca gravadas em estúdio. Encontram hoje facilmente online a sua versão de Strange Fruit, ou o belíssimo lado b de Hope There's Someone chamado Frankenstein. Ela deu-me também outros artistas. De 2000 a 2010 saíram quatro álbuns de Antony & The Johnsons, quatro de CocoRosie e sete de Devendra Banhart: foram o meu pão e a minha água (e a minha água de colónia, como escreveu Adília Lopes).
Em Can the Monster Speak?, Paul B. Preciado faz o mais bonito elogio da literatura que conheço:
I do not owe this survival instinct to psychoanalysis or psychology, quite the reverse, I owe it to books, to feminist, punk, anti-racist and lesbian books. My temperament was not much suited to socialization, so, for me, books were authentic guides through the desert of fanaticism and sexual difference. Books that – like the works of Giordano Bruno or Galileo that put an end to geocentrism – had been written to put an end to the psychoanalytical conviction that to challenge the binary was tantamount to entering the domain of psychosis. I remember the first time, in a second-hand bookshop in Madrid, when I came across a Spanish translation of Monique Wittig's novel The Lesbian Body, in a 1977 edition published by Pre-Textos. (…) In order to discover the other books that would lead me to where I am today, I had to travel, I had to learn other languages: this was how I discovered Magnus Hirschfeld's Sappho and Socrates, Virginia Woolf's Orlando, Annemarie Schwarzenbach's (…) To See a Woman, the (…) Report against Normality published by the Front d'Action Révolutionnaire Gay, Guy Hocquenghem's Homosexual Desire, Joanna Russ's The Female Man, Loren Cameron's Body Alchemy, Guillaume Dustan's In My Room, the diares of Lou Sullivan, the novels of Kathy Acker, the feminist rereading of the history of science by Londa Schiebinger, Donna Haraway and Anne Fausto-Sterling, the theoretical texts of Gayle Rubin, Susan Sontag, Judith Butler, Teresa de Lauretis, Eve K. Sedgwick, Jack Halberstam, Susan Stryker, Sandy Stone and Karen Barad. Thanks to all these readings I learned to see beauty beyond gender. I grabbed these books and, like a fugitive, I ran as though my heels were on fire, and even today I am still running to escape the serfdom of the binary system of sexual difference. It is thanks to these heretical books that I survived and – more importantly – that I succeeded in imagining a way out.
Eu não posso dizer o mesmo porque aos dezasseis não sabia que tais livros sequer existiam. Pelo contrário, esta geração de art pop e freak folk (reparem nos adjetivos) deu-me vozes simultaneamente vulneráveis e potentes, os sons dos brinquedos de criança que nunca tive, o piano que havia abandonado, a poesia que comecei a escrever, verdade, beleza e muita ambiguidade: miúdas com bigodes pintados, homens de cabelo comprido e anéis nos dedos. Para quem como eu, ao contrário de Paul, não viajou e cresceu numa casa sem livros (e que constantemente sente síndrome do impostor por não ter lido mais cedo certos clássicos), esta década de música pirateada foi a minha literatura de formação.
6. Uma escolha muito pessoal de seis curtas e longas da década de 1940, para terminar
, The Maltese Falcon (John Huston 1941)
, The Seventh Victim (Mark Robson 1943) + Fragment of Seeking (Curtis Harrington 1946)
, The Uninvited (Lewis Allen 1944)
, Laura (Otto Preminger 1944)
, Fireworks (Kenneth Anger 1947)
, The Rope (Alfred Hitchcock 1948).