Lições de protesto
«Por vezes, pergunto-me se não estaremos de tal modo habituados a perder que já questionamos sequer essa situação» (Geoffroy de Lagasnerie)
1. Quase no final do filme La chimera, de Alice Rohrwacher (é do ano passado, gostei muito; já agora, vejam também o Lazzaro felice; voltando: La chimera, quase no fim): Arthur (o bom ladrão) reencontra Italia (a mulher). É levado até ela, pela linha do comboio: porque Italia e um grupo de outras mulheres e crianças e cães ocuparam uma estação de comboios que estava desativada. (Vimo-la antes no filme: era uma casa de erva, um lugar sem função.) «Não é de ninguém» a estação, diz uma das mulheres, «ou é de todos». Arthur anda por ali (está a reaprender a estação) e nós com ele: com o mesmo espanto infantil. Estão crianças a brincar na plataforma, mulheres a trabalhar na horta, na cozinha, Italia a pregar o tampo de uma cadeira: e ainda há muito por fazer. «Está tudo diferente», diz Arthur: «está bonito». Fez-se uma casa onde nenhuma havia e onde não se esperava que houvesse (aliás, onde não devia nunca haver uma casa): e isso também é um gesto político. «É uma situação temporária», diz uma das outras mulheres, e Italia responde: «mas a vida também é temporária».
2. Este ano, no 25 de abril, vimos três filmes feitos em Portugal na ressaca de setenta e quatro (estão todos no YouTube): Cenas da luta de classes em Portugal (Robert Kramer e Philip J. Spinelli, 1977), A lei da terra (Grupo Zero, 1977) e Bom povo português (Rui Simões, 1980). (Dois deles foram mostrados no Porto durante essa semana e o outro sei que passou em Lisboa.) Ao ver os três filmes, sobre os anos da festa e da desilusão com o 25 de abril, ficaram-me duas coisas na cabeça (falei sobre isso na altura): por um lado, a politização das pessoas, que, muitas delas analfabetas, depressa aprenderam todo aquele vocabulário da opressão e da luta, tanto nas cidades como nos campos (o que mostra como são simples as ideias simples); e, por outro, a voz daquelas tantas mulheres, que levaram o povo todo atrás. No primeiro filme, por exemplo, voltamos várias vezes à mesma mulher, que ocupou uma casa vazia depois da revolução, para ter uma casa onde viver e onde crescerem os filhos: e o filme mostra, de forma muito clara, como se organizaram as forças da reação, como isso aconteceu em Portugal e noutros países, quem as suportou, quem as financiou; mostra que o processo contra-revolucionário em curso levantou a bandeira da propriedade privada; que as comissões de moradores (as pessoas que ocuparam as casas vazias e que se coletivizaram) foram levadas a tribunal; que o povo tentou impedir os julgamentos; e que as pessoas, como aquela mulher, não estavam dispostas a deixar as suas casas, que não eram suas, mas que, agora, sim, eram casas. (Público de 9 de maio: «Habitação: não faltam casas em Portugal, elas estão é vazias».) Ao mesmo tempo, ouvimo-la, àquela mulher, a dizer que andam a pôr o medo no povo, a tirar-lhe a força que ele descobriu que tinha.
3. Inaugura já amanhã (sábado, 18, às seis) a exposição de algumas das fotografias que a Luísa Fernandes tirou nos últimos meses de termos saído para a rua. Havia muito por onde escolher, isto é, muitas fotos: porque a Luísa sai de máquina na mão sempre que há uma manifestação, uma vigília. (Podem ver aqui muitas outras fotografias: mas não deixem de passar pela livraria, no sábado e nos dois meses que se seguem.) Para a ajudar, dissemos-lhe só que escolhesse de entre as fotos que tirou no Porto, que é a cidade onde protestamos nós: e que se bastasse a este último ano. De uma forma talvez desarticulada, era importante para mim que a escolha das fotos passasse uma ideia de urgência, de que são estas as razões, hoje e agora, que nos levam a sair para a rua, as coisas que nos preocupam, que nos inquietam e desinquietam: para que se saiba, os nossos direitos e os direitos dos que podem menos do que nós; e a ideia de que a cidade é nossa. Ouvi de muitas pessoas que foi a primeira vez, em cinquenta anos, que saíram à rua no 25 de abril: fosse pelo redondo do número ou pela sensação de que não podemos ficar em casa, mesmo, antes que seja tarde demais. Primeiro, vi a rua a passar: depois meti-me nela. Vi cravos de lã e crianças de colo. Por causa da Luísa (porque estava atento a isso este ano), vi muitas pessoas de máquina na mão, a verem e a fotografarem outras pessoas. Vimo-nos uns aos outros: éramos muitos. Sorrimos, porque éramos muitos: e viemos para casa de coração cheio.
4. Escreve a Leslie Kern no livro Feminist City: «History is clear that social change doesn’t happen without some form of protest, and indeed most of the improvements in women’s lives in cities can be traced back to activist movements». «Rights aren’t won and defended in a classroom, on social media, or even via electoral politics. The work has to happen on the ground.» O livro é sobre como a cidade é o espaço de várias opressões e várias regras para as mulheres e para os seus corpos. «Not every woman will participate in some form of protest; in fact, most never will. But all of our lives have been shaped by them.» Uma das maneiras de desequilibrar a cidade, e de chamar a atenção para essas opressões, é sair para a rua e usá-la mal. Ocupar a rua é desregrá-la, é perturbar o normal funcionamento da cidade: e, com isso, inventar, experimentar novas formas de a viver. «Throughout history, women have used the city as both the site and the stakes of struggle, as French Marxist philosopher Henri Lefebvre put it. In other words, the city is the place to be heard; it’s also the place we’re fighting for. Fighting to belong, to be safe, to earn a living, to represent our communities, and so much more.» (O direito à cidade, para usar a expressão de Lefebvre, é o direito de poder usar a cidade sem gastar nem gerar dinheiro. É o direito de a usar criativa e improdutivamente.) «It was a legitimate reaction to a system. A system that made different rules for me as a young woman in the city. A system that threatened to punish me with sexual violence if I disobeyed those rules. Marches and protests taught me that it was okay, and good, and necessary to push back.» Ainda assim, convém que seja claro para nós que espaços são aqueles que ocupamos e de que forma: podemos estar a ocupar o lugar de alguém. Leslie Kern fala disso, de como percebeu que mesmo os protestos têm as suas regras, os seus códigos: e que esses códigos, consciente ou inconscientemente, põem corpos de parte. «With perspective, age, and more exposure to critiques from Black and Indigenous people, people of colour, disabled people, and trans folks, I have a better appreciation for how protest spaces can and do reproduce systems of privilege and oppression, as well as violent practices.» Importa lembrarmo-nos dessas pessoas que não podem protestar, seja por que razão for: ou porque não podem faltar um dia ao emprego; ou porque não têm como navegar a cidade; ou porque não se sentem seguras no meio de uma multidão, mesmo de uma multidão que diz estar a defendê-las.
5. Portanto, saímos à rua, nós, que podemos sair à rua sem sermos mortos ou espancados. E no fim do dia, quando chegar a hora de voltarmos para casa, nós, que temos casas para onde voltar: vamos poder dizer (a nós mesmos) que fizemos o quê? Talvez seja bom pegar (outra vez) no livro que Geoffroy de Lagasnerie escreveu em 2020 e que a BCF editou em Portugal logo no ano seguinte. Ele chama-lhe um ensaio de estratégia política, que é como quem diz uma raiva fria ou um fogo na mira dos olhos: um plano de como havemos de sair da nossa impotência política. Para ele, a esquerda joga para perder por pouco. A questão não é se estamos a fazer o suficiente na nossa luta: mas, sim, se estamos, de facto, a lutar. «Devemos perguntar-nos se aquilo a que chamamos os nossos “modos de acção”» (leia-se: o dicionário dos nossos gestos políticos) «não (...) são, na verdade, maneiras de fracassar. No exacto momento em que agimos, perdemos. Quando queremos agir, dizemos: vamos organizar uma concentração, publicar uma petição, manifestar-nos, ocupar aquele edifício… mas não será que, ao fazê-lo, estamos não a mobilizar-nos mas a organizar o nosso fracasso sem o sabermos e de um modo ainda mais tremendo por pensarmos que estamos a agir?»
6. A verdade, para Lagasnerie, é que «não agimos, fazemos como se agíssemos; não resistimos, fazemos como se resistíssemos; não protestamos, fazemos como se protestássemos.» O filósofo Günther Anders fala (criticamente) do espaço político como «um lugar onde nos pomos em cena», onde o resultado conta menos do que as imagens, as sensações. Lagasnerie concorda. (Transcrevo um bom pedaço do livro, porque pode ser-nos útil.) «[N]as mobilizações, tiramos fotografias sorridentes como se essa situação não levantasse problemas. O que significa sentir tais emoções nesses momentos, que deveriam ser momentos de luta contra a violência exercida sobre as mulheres, contra as práticas policiais, contra o racismo, contra o capitalismo… Não demonstrará que aquilo a que chamamos “a política” exerce outras funções além daquela que é suposto exercer?» («Aquilo a que se chama “lutar” torna-se outra coisa.» É, como com as mulheres de abril, uma questão de vocabulário: que palavras usamos para nos organizarmos, para nos mobilizarmos.) «Então, se quando cremos lutar, fazemos outra coisa, que quererá dizer lutar – e quando é que lutamos de verdade? Nunca se deve julgar uma mobilização do ponto de vista da satisfação que ela nos dá ou das recordações que guardamos – “foi uma boa manifestação”: a única coisa que conta é “foi eficaz?”. Caso contrário, é como se houvesse uma espécie de arte pela arte da luta.» (E, claro, uma ideia de auto-comprazimento: de uma sensação de missão cumprida.) «Avaliamos uma manifestação em função do seu ambiente, do número de presentes, do seu percurso, das pessoas que conhecemos – desenvolvemos critérios internos de apreciação não tomando de modo nenhum em consideração a única coisa que deveria contar: ganhámos terreno?» Ocupámos a cidade: mas ganhámo-la? Lagasnerie está a falar (acho eu) de uma inteligência da luta e de uma economia das nossas forças: como se nos preparássemos para um longo combate. Diz-nos que enchamos o coração quando ele estiver vazio, com as caras e os sorrisos uns dos outros, e que lutemos quando for tempo de lutar: nas coisas pequenas e nas grandes.
Boa semana,
r
andamos com as mesmas questões na cabeça. falei da questão da ocupação dos espaços (embora numa perspectiva um pouco diferente) no alarido desta semana (que saiu ontem à noite). sinto que há uma necessidade de nos desprendermos violentamente da dopamina das redes para as nossas manifestações e protestos serem eficazes. para já, deambulamos.