Merdra!
«Entom o Dom Ubu abanou a pêra, / sendo por isso chamado pelos ingleses / Shakespeare e dele tendes com tal nome bastas / belas tragédias por escrito.» (Alfred Jarry)
1. Em 2005, a Luísa Costa Gomes traduziu as quatro peças do ciclo Ubu, de Alfred Jarry, para o espetáculo UBUs, do Ricardo Pais, no Teatro Carlos Alberto. (Há três ou quatro anos, no Mosteiro de São Bento da Vitória, no Porto, estava uma exposição de elementos cenográficos e adereços de espetáculos apresentados nos teatros do São João, e podiam ver-se lá uns falos de madeira, toscos e grossos, cor-de-rosa, vermelhos na ponta, montados em berbequins: e um sensor de movimento ligava os berbequins e os falos começavam a girar, e ouviam-se os motores a andar à roda, e ao fim de um tempo paravam. Não sei se ainda lá estão.) Já havia uma tradução, mas só da primeira peça, Ubu Roi, a mais conhecida: e a que mais filhos (literários) teve. Na nota que abre a edição das peças, a Luísa explica: «Dado que a tradução existente de Rei Ubu, com o título Mestre Ubu, feita por Luís de Lima e Alexandre O’Neill no princípio dos anos sessenta, publicada pela Minotauro e repetidamente encenada, é ela própria uma versão e uma dramaturgia, pareceu-me que fazia mais falta em português uma simples tradução das peças de Ubu – pois a versão O’Neill é bastante mais engraçada do que o original». Lima e O’Neill traduzem a primeira fala da peça (o nosso título de hoje, que em francês é «Merdre!») por «Mérdia!». É mais português, mais fácil de dizer: cai melhor da língua.
2. Mas recuemos. Paris, 10 de dezembro de 1896. Sobe o pano. Cena um: entra o Dom Ubu em palco, gordo e redondo (podem vê-lo aqui numa imagem da época), e diz «Mérdia!», ou «Merdra!», como traduziu a Luísa. Levantou-se o teatro, claro: foram precisos quinze minutos até que o público se calasse e a peça pudesse continuar. Jarry, que tinha vinte e três anos quando a peça estreou, criara a figura do Mestre Ubu ou do Dom Ubu quando tinha quinze anos, para gozar com um dos professores da escola em que andava. Nessa altura (o público eram os colegas de turma), Jarry montou uma peça de fantoches sobre a vida e as façanhas de um tal de Dom Ubu, gordo e redondo e senhor de um triste poder (que é o do berro e da régua). Quando recupera a figura e reescreve a peça, aquilo a que Martin Esslin chama «o olhar cruel de um aluno de escola» tinha-se aguçado, tinha bebido de outras fontes literárias, mas guardava aquela crueldade, aquela barbaridade infantil. Só que agora os fantoches eram atores de pau, e o público era outro: estava a sala cheia de professores. Jarry: «Eu queria que, subido o pano, o palco aparecesse ao público como o espelho dos contos da senhora Leprince de Beaumont, onde o devasso se vê com chifres de touro e corpo de dragão, exageros relativos a seus vícios. Não é de estranhar que o público tenha ficado estupefacto ao ver o seu ignóbil duplo, que ainda lhe não fora devidamente apresentado, todo ele feito, como tão bem descreveu o senhor Catulle Mendès, “da eterna imbecilidade humana, da eterna luxúria, da eterna gula, da baixeza do instinto erigida em tirania; dos pudores, das virtudes, do patriotismo e dos ideais dos que tiveram direito a um bom jantar”». Já sabemos: quando se abre uma porta, primeiro entra a barriga, só depois é que entra o burguês.
3. Em 1966, Peter Handke escreveu uma peça, uma das suas peças faladas (na medida em que não há personagens, isto é, há o texto, passado de falante em falante, dito na cara das pessoas), chamada, justamente, Insulto ao público. Uma das instruções que Handke deu aos atores da sua peça, e que abrem o texto, é para verem os filmes dos Beatles. «No primeiro filme dos Beatles,» (A Hard Day’s Night) «vejam o sorriso do Ringo Starr no momento em que, depois de os outros terem feito pouco dele, ele se senta à bateria e começa a tocar».
4. O Rei Ubu é uma remistura de ideias de várias peças de Shakespeare: começa por ser uma versão de Macbeth (a Dona Ubu convence o marido a matar o rei e a tomar o seu lugar), mas depois tem o fantasma de Hamlet e o urso do Conto de Inverno. («DOM UBU: Um urso! Ah! Que bicho atroz. Oh! Coitado de mim, estou comido. Que Deus me proteja. E vem para mim. Não, é o Cotica que ele apanha. Ah, que alívio. (...) Desenrasca-te, meu amigo; de momento, estamos a rezar o Pater noster. Cada um tem a sua vez de ser comido.») Para Martin Esslin, Alfred Jarry é um dos pais do absurdo. No livro The Theatre of the Absurd, ele percorre a tradição que antecedeu, e que, de certa maneira, dá as coordenadas para perceber, o teatro que começou a escrever-se a partir de meados do século XX: o teatro de Samuel Beckett, Arthur Adamov, Eugène Ionesco, Jean Genet, Harold Pinter e muitos outros autores. Aliás, Ionesco, em 1972, também fez uma reescrita (ou uma paródia, se quisermos) de Shakespeare, chamada Macbett: como se após a Segunda Guerra Mundial, já com a plena consciência do absurdo que é a vida (para quem não sabe, viver é empurrar uma pedra que não pára de rolar montanha abaixo), a tragédia fosse, agora, incapaz de descrever a realidade: como se só a comédia triste do absurdo fosse capaz de a traduzir. (Já agora, logo depois de falar do Ubu de Jarry como um dos precursores do teatro do absurdo, Esslin fala de As mamas de Tirésias, de Guillaume Apollinaire. Isto porque: a partir da semana que vem, voltamos a juntar-nos para ler referências LGBTQ, desta vez na literatura francesa, e havemos de ler, ainda não sei em que semana, uma parte do texto de Apollinaire. Vai ser sempre às segundas, às 18h.)
5. Dom Ubu, entretanto, foi derrotado pelo exército do czar, e fugiu do urso (comeu-o), e apareceu-lhe a mulher enganada de anjo, mas ele viu que era ela e fê-la em pedaços, mas ela não morreu, e ajudou-o a bater nos polacos, e escaparam os dois, e desistiram de ser reis, e meteram-se num navio para França e, chegados lá, começou tudo outra vez. Na segunda das quatro peças, Ubu agrilhoado, a Dona Ubu pergunta: «Mas de que vamos viver, se já não queres ser Mestre de Finanças, nem rei?». Dom Ubu responde: vão trabalhar com as mãos. «Já que estamos no país em que a liberdade é igual à fraternidade, a cuja só é comparável à igualdade da legalidade, e como não sou capaz de fazer como toda a gente e para mim é igual ser igual a toda a gente (...), vou para escravo, Dona Ubu!» Não me admirava nada que, no próximo mês de março, muita gente fosse votar com uma mentalidade não muito diferente desta: a de preferir a escravidão à liberdade. (Lembram-se quando eu disse que o público gosta de se sentir insultado, de ter algo com que se indignar? É mais ou menos a mesma coisa.) Comecei este ano a acabar de ler o Nós, a distopia que Evgueni Zamiatine escreveu em 1921 e que influenciou muita da escrita utópica que se publicou depois: o Admirável Mundo Novo, o 1984, o The Dispossessed da Ursula K. Le Guin, e outras. (O livro foi primeiro publicado em Nova Iorque, numa tradução inglesa, em 1924, e apareceu em russo em 1952, mas também nos Estados Unidos: na Rússia, o livro só saiu em 1988, quase no fim da União Soviética.) O mundo de Nós (um mundo do qual a natureza, na sua eterna desorganização, foi posta lá fora, atrás de um muro) é uma espécie de ditadura da felicidade. A certa altura, um poeta (que é um matemático das imagens) reconta uma lenda antiga:
Uma lenda que se aplica ao nosso caso, a este nosso mundo. (...) Aquele casal, no Paraíso, teve que escolher entre felicidade sem liberdade ou liberdade sem felicidade. Não havia terceira alternativa. Os pobres doidos escolheram a liberdade e aconteceu sabes o quê? Evidentemente, durante as épocas que se seguiram suspiraram pelas algemas. Algemas, percebe? É o significado de Weltschmerz. Durante séculos! E só nós é que por fim descobrimos a maneira de recuperar a felicidade. Mas escuta, escuta agora o seguinte: o Deus dos antigos e nós sentamo-nos lado a lado, à mesma mesa. Sim! Ajudámos Deus a vencer o Diabo de uma vez por todas. Porque era o Diabo que incitava os mortais a transgredirem o interdito, a provarem a liberdade perniciosa, era ele, a serpente subtil. Mas nós, com calcanhar forte, esmagámos a cabeça do insignificante ofídio e scrach! E chamámos a nós o Paraíso, novamente. Tornámos a ser simples de coração, inocentes como Adão e Eva. Acabaram-se todas aquelas tolices a respeito do Mal; tudo é tão simples quanto pode sê-lo, infantil, paradisiacamente simples. O Benfeitor, a Máquina, o Cubo, a Campânula Pneumática, os Guardas: tudo isso é bom, grande, esplendidamente belo, nobre, exaltado, cristalino. São tudo formas de proteger a nossa não-liberdade, ou seja, a nossa felicidade. No nosso lugar, os antigos começariam a reflectir sobre tudo isso, a fazer comparações, a quebrar a cabeça com o que é e o que não é ético.
6. Apesar de tudo, Jarry sabe que o destino natural (e tristemente inevitável) do aluno é tornar-se o professor. Envelhecemos e tudo nos ofende: tudo nos assusta. Mas está tudo bem: porque o mundo não acaba connosco. «[N]ós também nos tornaremos homens graves e gordos e Ubus e depois de publicarmos livros muito clássicos seremos todos provavelmente presidentes da câmara de cidadezinhas onde os bombeiros nos oferecerão jarras de porcelana fina quando entrarmos na Academia Francesa e aos nossos filhos ofertarão seus bigodes sobre uma almofadinha de veludo; e virão novos jovens que nos acharão muito antiquados e escreverão baladas para nos escandalizar; e não vejo razão para que deixe de ser assim.»
Boa semana,
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