1. Há uns anos, o miguel bonneville pediu-me que lhe mandasse uma lista dos filmes que eu associava a ele. A pergunta era assim, vaga. A ideia que tenho é que terá pedido o mesmo a outras pessoas: e que isso era uma espécie de exercício, não sei para quê. Andei aqui à procura dessa lista, porque já não me lembrava de tudo o que lá tinha posto: e encontrei-a. É uma bela lista. Mas já lá vamos. O mais curioso para mim é que hoje, mal me sentei a escrever esta carta para o miguel, uma carta que lhe estou a dever desde outubro passado, me tenha lembrado dessa lista: porque desde que falámos pela primeira vez, há mais de dez anos (na altura, tínhamos amigos em comum), sempre conversámos através de filmes. Funcionava assim: eu via um filme, achava que o miguel ia gostar dele, e mandava-lho. Ou ele via um filme e perguntava-me se o conhecia, se já o tinha visto. Ou então ele queria ver um filme qualquer e perguntava-me se sabia onde o encontrar. (Sempre fiz isso melhor do que ele.) Aos poucos, por tentativa e erro, fomos percebendo, intuindo, também, tantas vezes, o gosto um do outro: eu ia descobrindo quem era o miguel, ou quem era o miguel para mim, através dessas coisas que associava a ele: e a nossa amizade ia-se construindo em torno de coisas de que ambos gostávamos. Hoje, tenho outros amigos com quem converso assim: gosto tanto de um filme, ou de um livro, de uma canção, que tenho de lhes mostrar, imediatamente. É como se, cada um na sua cidade, me vissem sorrir ao longe.
2. Entretanto, passaram dez anos: e agora falávamos mais, agora menos. Mas sempre que retomávamos a conversa (porque era sempre a mesma conversa: dividir as coisas boas que encontrávamos), um ou o outro, era como se tivéssemos falado no dia anterior, à saída do cinema. No ano passado, depois de quase vinte a viver em Lisboa, o miguel voltou para o Porto. Isso significa que, agora, está mais à mão: e que podemos, de facto, ficar a conversar à porta do cinema. No último ano, foram poucas as semanas em que ele não veio à livraria: buscar um livro, falar da vida, encontrar as outras pessoas que fazem o mesmo, ser família connosco: ser casa. Uns meses depois de começar a vir regularmente à livraria, apercebeu-se de uma coisa. É que ao lado da livraria há um portão, com um corredor que dá para um pátio, lá ao fundo: e o miguel lembrava-se desse portão, vinte anos antes, e desse corredor. Quando nos contou isso, que nós (a livraria) éramos vizinhos de uma história que tinha vinte anos, eu só consegui pensar em como, um dia, quando a livraria já tiver fechado (porque esse dia vai chegar, inevitavelmente), uma pessoa vai passar aqui à porta e lembrar-se de que comprou aqui um livro: ou, então, de que vendeu aqui livros a muita gente.
3. Em outubro de 2023, o poeta e performer miguel bonneville veio à livraria marcar os seus vinte anos de trabalho. Escrevi propositadamente marcar e não celebrar, como também escrevi trabalho e não carreira: o que é, em Portugal, uma carreira nas artes, e o que há ainda para celebrar? Quando muito, celebra-se a teimosia dos artistas: o continuarem, ano após ano, a tentar passar a porta de uma casa que não os quer lá dentro e que, de cada vez que os deixa entrar, lhes diz para não se porem muito à vontade. Quando ele nos disse que queria vir marcar essa data à livraria (perguntou-nos se podia e nós dissemos imediatamente que sim), isso era (estou eu a dizer) um gesto de amor e de confiança, claro, mas era também um dedo levantado a todos os outros sítios que podiam (e, na verdade, deviam) ter acolhido essa celebração: ter celebrado esses vinte anos de carreira e ajudado a preparar os próximos vinte. Na verdade, tê-lo feito na livraria faz todo o sentido, mas por outra razão: é que o trabalho do miguel é um trabalho da palavra, mesmo quando é um trabalho do corpo. Escrevi lá atrás «o poeta e performer miguel bonneville», mas as pessoas que o conhecem do palco nunca leram os livros dele (as pessoas do teatro não gostam muito de ler), e o contrário também, muitos dos que o conhecem dos livros nunca o viram em palco. É muito confuso, pessoas que são várias coisas: ninguém sabe o que fazer com elas, nunca são suficientemente isto nem aquilo. Mas agora já sabem: o miguel é todo poeta e todo performer. Quase todos os espetáculos que ele apresentou nos últimos dez anos, dentro da série A importância de ser, começaram e depois continuaram a viver em livros que são diários de criação, missais, manuais de eletrónica, bestiários, mapas de bordo, folhas de cobre polido, espelhos de bolso: são poéticas, confissões, cartas de vários cuidados. São dos livros mais bonitos que temos na livraria, e vendemo-los sempre como quem conta um segredo: para que ele se espalhe.
4. Há alguns anos, o miguel começou a rasurar o seu primeiro nome: como se riscasse o que está para trás, ao mesmo tempo que preparava o lugar para todos os nomes que viessem a seguir. Nós, que escrevemos primeiro à mão, sabemos que a rasura é um risco sobre o que já não serve, mas é, normalmente, um não que precede um sim: é a primeira metade de uma correção. Mas: e quando nada vem substituir a rasura? E quando a rasura é aquilo que fica: como os golpes que o Lucio Fontana dava nas telas, ali, a chamar a atenção toda para o gesto? A rasura pode ser isso: um traço de preto a meio do nome, como uma faca passada de través. E será isso, mas também pode ser a coisa que começa um processo progressivo de apagamento: de recusa. No último ano, desde que veio viver para o Porto, o miguel não apresentou nenhum espetáculo. E eu percebo perfeitamente: chega um momento na vida de artista, que é nove partes escritório, em que a única resposta possível é a do escrivão que dizia «prefiro não o fazer». Também pode ser isso, a rasura: insistir em algo, e em exigir algo, que é inconveniente para todos os outros. Com esta história da rasura, o miguel tornou-se o terror dos revisores e dos designers: e depois só escreve com minúsculas: é insuportável. E ele sabe que está fadado a ter de dizer sempre a mesma coisa: como o Paulo a insistir que o aberta, em Livraria aberta, se escreve com minúscula. Ninguém percebe que importância é que isso tem. E é verdade, infelizmente: tudo o nosso é mais importante para nós que para qualquer outra pessoa, e não há solidão maior do que essa.
5. É verdade, a lista. Já me ia esquecer. Como eu disse lá atrás, é uma belíssima lista. Hoje, a olhar para ela, só estranho que ela não tenha nenhum filme da Duras: não sei em que é que eu estava a pensar. De resto, mantenho tudo. Senão vejamos, por ordem cronológica: Le feu follet, Louis Malle, 1963; A Bigger Splash, Jack Hazan, 1973; Le diable, probablement, Robert Bresson, 1977; Les rendez-vous d’Anna, Chantal Akerman, 1977; 3 Women, Robert Altman, 1977; Arrebato, Ivan Zulueta, 1979; Possession, Andrzej Żuławski, 1981; Le rayon vert, Éric Rohmer, 1986; Der Rosenkönig, Werner Schroeter, 1986; Les roseaux sauvages, André Téchiné, 1994; The Pillow Book, Peter Greenaway, 1996; La pianiste, Michael Haneke, 2001. Agora já podem fazer, em vossas casas, o programa que eu escolheria para o miguel. Nem de propósito, o A Bigger Splash vai passar cá no Porto, no dia 6 de novembro, dentro do ciclo que o Batalha está a dedicar aos usos e às funções da piscina no cinema. Piscina é uma daquelas palavras que é, ao mesmo tempo, a forma e o conteúdo: o prisma e a água lá dentro. E para o Hockney, que um dia foi à América e se apaixonou pela limpeza da luz (escrevi aqui sobre ele no ano passado), a piscina é uma lente que foca e estilhaça o corpo: e que o faz arder em fogo manso. Enfim, a lista. Pensei nos filmes. Cheguei ao número doze, que é um número redondo. E enviei-lha. Lembro-me que o miguel respondeu a dizer que estranhava algumas das escolhas. Mas isso é porque uma lista diz menos sobre as coisas que lá estão dentro do que sobre a pessoa que a fez: e que achou (melhor, que teve uma íntima certeza) que aquelas coisas podiam, deviam, estar juntas. Porque uma lista também é uma lente: uma lente de olhar para as coisas com outra atenção.
6. Tenho pensado muito sobre isto, também por causa dos eventos que vamos receber na livraria no próximo mês (muito contente, novidades em breve): mas cada vez é mais claro para mim que a atenção das pessoas é um bem cada vez mais escasso, e o tempo das pessoas também, e que se vamos pedir-lhes que venham à livraria e que passem umas horas connosco e com os nossos convidados, então esses convidados têm de ser pessoas de quem nós gostamos muito, e o trabalho que fazem tem de nos entusiasmar, e o entusiasmo com que falamos deles tem de encher-nos as mãos e os olhos, tem de ser contagioso, como um sorriso na cara. O que nos leva a outra conversa. Vamos ser honestos: não há crítica em Portugal, seja do que for. Os jornais não têm espaço para ela, os críticos morrem por falta de prática, e o que sobra é uma espécie de publicidade vestida de opinião, entre o desprezo e o louvor: sem (quase) nada pelo meio. Mas eu, que critico muita coisa, mas não sou crítico de nada, não quero gastar o meu tempo a irritar-me performativamente, a demorar-me a escrever sobre uma coisa de que não gosto: nem o meu nem o vosso tempo, a minha ou a vossa atenção. A vida é tão pequena. Estas minhas cartas levam, normalmente, dez minutos a ler (há uma ferramenta aqui no canto que me diz isso), e o que eu quero é que esses dez minutos sejam um retrato do meu entusiasmo nessa semana, ou nesse mês. O que nos traz de volta à carta de hoje. No sábado, dia 28, o miguel vem à livraria, como vem todas as semanas, mas desta vez para falar (entre outras coisas) do livro do daniel e outros textos, que saiu há umas semanas, pela Urutau: e que é um dos livros mais tristes e mais bonitos deste ano. O Paulo leu-o há uns meses, porque escreveu a orelha do livro: que é o texto que recebe o leitor à chegada. Eu não: eu quis esperar que ele fosse publicado. Quando o li, mandei mensagem ao miguel a dizer-lhe que tinha gostado muito do livro (muito). Não vou dizer o que ele respondeu. Mas sei que no dia 28, como em todos os outros dias, o miguel sabe que a livraria é dele: e isso deixa-me feliz.
Boa semana,
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