[Interrompemos por agora a programação da aberta. A livraria mantém o seu horário até sábado 12 de agosto: das 10h às 13h30 e das 14h30 às 19h. Na semana de 14 a 22 de agosto, estamos fechados. De quarta 23 de agosto a quarta 13 de setembro, funcionamos apenas no período da tarde: das 14h30 às 19h. Quinta-feira 14 de setembro, voltamos ao horário completo.
Decidi usar a pausa para escrever sobre poetas. Se, por um lado, não raro me pedem sugestões de livros que adorei, ouço muito, por outro lado, que não são «leitores de poesia». Nestas minhas três próximas cartas, quero falar-vos da poesia que me tem salvado e de livros que me fazem fotografar muitas páginas e encher as mensagens privadas dos amigos de poemas.]
1. Manuela Amaral
Foi na primavera que li Manuela Amaral pela primeira vez. A Helena Topa falou-nos dela na única vez que passou pela livraria e este ano, ao preparar as conversas da aberta sobre referências LGBTQ na literatura portuguesa da ditadura, sabia que tinha de ir procurá-la. Isso significou, como sempre, umas manhãs na Biblioteca Pública. Amaral (sim, tia da Ana Luísa do mesmo apelido) publicou durante o Estado Novo sempre em edições de autor (e muitas com desenhos da própria). O que sei sobre a vida dela é o pouco por-verificar que se encontra online, mas posso assumir que isto signifique algum tipo de privilégio (pelo menos, financeiro). Só nos anos 80 uma editora em Coimbra lhe publicou os últimos livros.
Mas comecemos pelo início: de 1957 a 1967 (dos 23 aos 33 anos), Amaral foi criando uma poesia sobre o desejo do ponto de vista de alguém que cedo se percebe não se conformar com as rédeas sociais. Se os dois primeiros livros pretendem um certo tom de poesia cristã (apesar de ter poemas com plágios descarados de uma leitora de Florbela Espanca), a partir de Fé pagã (1961, com 27 anos) até isso começa a ser questionado (como de resto o próprio título indica). Em A cruz de pau (1965, com 31 anos) já até uma ideia de casamento que aprisiona a mulher foi destruída na sua poesia (a mulher à margem a recusar com a boca o pão que não lhe é dado).
1967: Hino proibido (33 anos) é um pequeno livro muitíssimo curioso. Cinco poemas são anulados com um grande carimbo azul que opaca a mancha gráfica do texto. Só lhes sabemos os títulos pelo índice: «Visão», «Na praia», «Benção carnal», «Consumação», «Ausência». Uma questão que por hoje fica sem resposta: dá-se a ironia de o livro se chamar «proibido» e ter uma epígrafe de Botto e alguns poemas terem sido de facto censurados ou – como um amigo sugeriu – os retângulos azuis de tinta são autorais, design e performance anti-censura? Não sei, mas a verdade é que há um interregno depois deste livro. A autora está em Paris no maio de 1968 e voltamos a lê-la em 1974, já depois da revolução.
Aí começa uma segunda fase poética e, para mim, a mais importante. Mulher repetida (1974, com 40 anos) e Amor geométrico (1979, com 45) são dois incríveis livros de poesia erótica e social do ponto de vista de uma mulher que se relaciona com outras mulheres. (Mais tarde, na tal editora de Coimbra e na casa dos 50 anos, há ainda uma fase final que me parece menos relevante para aquilo que nos interessa aqui.) Se encontrarem estes dois livros em alfarrabistas, não hesitem sequer em comprá-los. Há dois poemas no livro de 1979 que me marcaram imenso quando os li há um punhado de meses e hoje não concebo uma antologia homoerótica de literatura portuguesa que não os inclua.
Num (relembro: em 79) a autora afirma que o «Casamento é amor / e atracção / entre duas pessoas / (do mesmo sexo ou não)» (Poema 1): o poema foi escrito como forma de protesto à alteração ao Código Civil de 1977, que tinha melhorado a noção de casamento pós-revolução, mas ainda limitava quem podia a ele aceder. Amaral em 1979 (vou repetir esta data até à exaustão) já estava a pensar mais à frente. No outro, ainda mais emocionante lido hoje à distância de 45 anos, Amaral critica o monge Mendel, pai da genética, com os lindos versos: «Mendel esqueceu-se QUE / pode haver / um ovário / pendurado / no coração do homem / ou um testículo / semeado / na cabeça da mulher» (Poema 3).
2. Luís Miguel Nava – Poesia: 1979-1995 (Assírio & Alvim, 2020)
No início do Medo do Al Berto, uma personagem diz que «um arraso é quase sempre uma promessa de cama». É difícil não gostar de Luís Miguel Nava quando, para além de tudo o resto, ele escreve precisamente o oposto: «se ele fosse uma cama estaria por fazer»; não, melhor: «Já nem sequer dele quero ouvir falar, / saber que se ele / fosse uma cama estaria por fazer nada me traz / agora além de desconforto» (Já nem sequer). É difícil falar deste homem sem dizer (de novo e de novo) que, dos mortos, é o meu poeta português preferido. Quero muito escrever uma carta só sobre ele, como fiz há uns meses com os livros do Amândio, pelo que hoje deixo apenas um poema:
Não muita vez (Luís Miguel Nava)
Não muita vez nos vemos, mas, se poucos
amigos há para falar
dos quais me sirvo de relâmpagos, de todos
é ele o que melhor vai com a minha fome.Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele, onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos. Tantas vezes
o suor os traz consigo da memória que não tenho
na pele poro através
do qual eles não procurem
sair quando transpiro. A pele é o espelho da memória.
3. Daniel Faria – Poesia: 1992-1999 (Assírio & Alvim, 2015).
Como o Nava, o Daniel Faria é outro que gostaria de ter conhecido pessoalmente. Este começou a publicar no fim da vida daquele, pelo que não se devem ter cruzado, não sei, mas são certamente a outra face um do outro. O Daniel é um poeta sagrado – e isso não exclui o erotismo, antes pelo contrário, a tradição apoia-o (vejam-se as referências ao São João da Cruz). Mas esse enorme peso do masoquismo judaico-cristão faz com que o Daniel possa ser lido como um dos poetas mais intensos e de erotismo mais agressivo da poesia portuguesa. É também por isso (mas não só) que o tenho na livraria. Quem disse que a procura de Deus é um processo pacífico, quem disse que a oração é um método passivo?
E depois há, claro, a poesia de um jovem deslocado, que viveu 28 anos, estudou literatura, quis ser monge e de que só conhecemos textos dos últimos sete anos de vida.
Apareço na fenda do muro
Pareço os rios nos mapas
Pareço os rios no chão – um risco
Na orientação incerta – o rasto
De um homem que procura uma ideiaApareço para lançar uma ideia que alicerce
O coração – um ritmo mais tarde. Eu que nunca
Aprenderei por onde
É que o muro – o mundo – começa a dividir
Este é um dos poemas dele de que mais gosto, mas vou aproveitar a carta para vos deixar um excerto que sempre me emocionou da entrevista que a Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto republicou na edição da Gazeta Literária em sua homenagem. O entrevistador é Francisco Duarte Mangas. Vou transcrever isto a pensar em ti, Bonneville, acho que também podes gostar de ler:
Já é monge?
Sou postulante ainda. (…)
Isso quer dizer o quê?
Quer dizer que é um ano de experiência, nós damos os primeiros passos na vida monástica depois, se quisermos, avançamos para o noviciado, um ano mais à frente com uma experiência mais exigente. É o tempo certo para vivermos intensamente o que se entende por vida monástica. E ao fim desse ano, se quisermos entrar para a vida monástica temos a profissão simples, uma missão simples, e, passados três anos, se de facto quisermos continuar na vida monástica, temos uma profissão solene.
Afinal, por que motivo foi para monge?
(risos) Eu não tenho uma explicação para lhe dar. Lá está, é explicar o inexplicável… Eu nunca percebi muito bem isso que diziam de ser chamado, de se ter uma vocação. Aliás, nós somos mais empurrados, eu acho, do que chamados. Mas isso é uma resposta a uma vocação de facto, é um homem que encontra o seu lugar. E eu não sei, exatamente, por que fui para monge. Sinto, isso sei, que o meu lugar era na vida monástica, que sou chamado a isso; e sei o que pretendo da vida monástica, o que Deus pretende de mim na vida monástica. O que Ele pretende na vida monástica é testemunho, esse testemunho do inexplicável – como, de facto, Ele é tudo e preenche tudo. Santa Teresa dizia: só Deus basta. E o monge tem de testemunhar, antes de mais, que só Deus basta e há coisas muito importantes na vida de facto. Há coisas que gostava muito e tive de deixar, que gosto muito, que são boas, que são importantes.
Por exemplo?
Por exemplo, o cinema. Por exemplo, o teatro. Essas são coisas que me lembram assim mais. Ou, então, a possibilidade de ir a uma livraria comprar um livro.
Não pode fazer isso?
Não posso fazer com esta liberdade, preciso de pedir dinheiro para comprar os livros; os livros lá vêm para a biblioteca, são pedidos pela biblioteca e, é claro, se eu chegar a uma livraria e se tiver dinheiro, se tiver trazido dinheiro, posso comprar – mas, é evidente, terei sempre de pedir autorização para comprar esse tipo de livros. E todas essas coisas são muito importantes, reconheço, e toda a gente reconhece, e os monges reconhecem mérito, que são importantes. E nós deixamos isso tudo para dizer que isso é tudo muito importante, mas não é o importante. De facto, hoje é um pouco explicar o inexplicável: muita gente tem a perceção de que a vida monástica é assim, mais ou menos, como uma espécie de mina anti-pessoal: quem calca fica amputado. E parece que é cercear a liberdade, que nos tira capacidade, e nos limita.
Limita alguma coisa.
Como todas as opções: é escolher entre várias possibilidades. Portanto, quando a gente escolhe, está a deixar outras. Nesse sentido, significa algum limite. Mas também significa – eu acho que é isso – encontrar o seu lugar. É encontrar o caminho da felicidade. E digo felicidade no sentido que tem o latim de felix. No Latim, feliz tem o sentido de qualquer coisa ligada à lavoura, significa ser fértil. Ser feliz é ser fértil, fecundo. Só um homem no seu lugar, um homem que encontra o seu espaço, o lugar de ter raízes, é capaz de frutificar e completar-se em todas as suas dimensões. Eu acredito plenamente nisso. A experiência que tenho feito até agora é, de facto, que aquilo não me limita – mas completa.
A carta já vai longa e ainda faltam três pontos: continuamos daqui a duas semanas a poesia portuguesa, está bem? Agora faltam os vivos. Pergunto-me só, para terminar, se o que, na poesia espanhola, eu chamava de «vingança» não poderia tão somente ser lido como a poesia de alguém, apesar de tudo ou contra tudo, fértil no seu lugar, por muito inconveniente que ele possa ser (para si e para os outros).