1. Já disse isto aqui há uns tempos: que o Manuel Graça Dias, arquiteto, na cadeira que dava na Faculdade de Arquitetura (isto há vinte anos), nos dizia para vermos filmes em que a arquitetura, a construção, a organização do espaço, faziam parte do discurso, orientavam o nosso olhar e a nossa perceção; depois, mandava-nos escrever sobre eles. Aos alunos de Arquitetura (sobretudo aos do Porto, filhos do Siza e do Souto de Moura) pedia-se (acima de todas as coisas) que desenhassem: que pensassem através do desenho, do esquisso. A ideia por trás disso (que, na altura, era o ser e o estar da Escola do Porto, não sei como é agora) é que a resposta chega com o traço no papel (curioso, lúdico, persistente), e que, enquanto chega e não chega a resposta, começamos a perceber aos poucos qual é a pergunta. E está certo. Mas nas aulas do Graça Dias ninguém desenhava. Pensava-se com os olhos, escrevia-se: e, com isso, complicava-se o estojo do arquiteto. Foi a primeira vez que escrevi sobre filmes. Lembro-me disso ainda hoje, periodicamente, sempre que um filme me pede que olhe para os espaços e para os volumes com o olhar do arquiteto (que não cheguei a ser): que, de certa forma, é um olhar descentrado. Não sei bem explicar o que isso significa (como assim, descentrado? e em relação a quê?), mas parece-me uma maneira justa de dizê-lo: um olhar que às vezes se distrai das pessoas que ocupam um espaço, e das formas como o ocupam, para se perder a seguir o fio de uma parede, a ver-lhe os ocos e os cegos, a deitar-se na preguiça do chão, no vidro frio, na pedra quente. É um olhar (o do arquiteto) que é como um gato, que dorme e acorda e anda de um lado para o outro, por entre as pernas das pessoas, todo desinteressado delas: porque pode dar-se a esse luxo. Digamos, em teoria, que é possível desenhar um espaço sem olhar às pessoas. Aliás, há livros inteiros sobre as medidas de uma pessoa no espaço (a altura, o comprimento de um braço, de uma perna, etc.), de tal maneira que decidir o que é uma pessoa, para efeitos de projeto, é uma função de, justamente, não ser preciso olhar: é uma abstração estatística. O problema disso é que uma mediana vai sempre depender da amostra recolhida: e uma amostra, tenha o tamanho que tiver, é uma coleção de ângulos mortos e de cegueiras mais ou menos voluntárias. Por isso, sim, é possível desenhar um espaço sem olhar às pessoas: mas isso significa que ele se vai desenhar segundo uma ideia genérica, e obrigatoriamente simplificada, das pessoas que o vão utilizar, das suas práticas de vida, das suas necessidades. E isso, na maior parte das vezes, faz com que sejam as pessoas a moldar-se aos espaços em que vivem: e não o contrário, como deveria ser.
2. Comecei a pensar nisto, nos espaços em que vivemos e nas vidas que eles desenham para nós, porque o Cineclube de um querido amigo meu passou esta semana O quarto ao lado, o filme mais recente do Almodóvar. (Se derem por vocês em Ourém numa terça à noite, procurem pelo Teatro Municipal: há bolo, e há vontade de ver filmes com outras pessoas e ficar a falar sobre eles. Cá no Porto, o filme vai passar no Batalha no dia 5 de julho.) Na verdade, não gostei assim tanto do filme quando o vi em dezembro. (O Paulo acha que ele seria melhor, e bem mais almodovariano, sem os primeiros quarenta e três minutos.) Mas, esta semana, comecei a pensar sobre ele através da sua arquitetura, ou melhor, através dos espaços que a história ocupa (as casas, os quartos), e de como isso nos ajuda a pensar sobre os temas do filme.
3. Sem dizer mais do que é preciso (suponho que a maior parte de vocês saiba sobre o que é o filme, mas seja como for): Martha (Tilda Swinton) está numa situação em que a família não lhe pode valer (por pudor ou vergonha ou proteção, talvez todas: não me lembro, não fui rever o filme), e, por isso, porque não pode resolver a situação sozinha, pede ajuda a Ingrid (Julianne Moore). As duas eram amigas, mas já não se viam há muito tempo, e isso é importante: porque situa a amizade delas em terra de ninguém. Não há uma casa em que ambas estejam confortáveis. Ingrid aceita ajudá-la. As duas alugam uma casa de férias, algures. Chegam juntas. Martha pede a Ingrid que fique no quarto ao lado, para o caso de alguma coisa acontecer. (Para sermos rigorosos, ela não fica, exatamente, no quarto ao lado, mas o filme continua a chamar-se assim: é sobre uma ideia, mais do que sobre uma geografia.) E eu não tinha pensado nisto antes, mas dizer de um quarto que é o quarto ao lado só é possível numa casa que não é nossa, que não habitamos. Caso contrário, esse quarto teria uma história: seria o quarto que tem ou que já teve uma determinada função, que alguém ocupa ou ocupou. Ali, naquela casa de ninguém, é só o quarto ao lado. E chamá-lo assim sublinha a horizontalidade da relação entre elas (por oposição à verticalidade da relação familiar), mesmo que uma delas precise mais da outra do que o contrário. É uma relação desenhada por vontade das duas, e fundada num grande gesto de cuidado: que é o melhor amor. Mas há outra razão para isso, claro. É que o centro do filme é um dos casos mais concretos em que as leis do cuidado se sobrepõem às leis da família: como devia ser sempre, aliás.
4. Almodóvar sempre percebeu muito bem as funções da arquitetura nos seus filmes: que os espaços desenham o olhar, e vice-versa. Aliás, o primeiro filme que ele deixa que se mostre (Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón, de 1980) começa com uma ideia roubada ao Rear Window, do Hitchcock: a ideia de que uma história pode começar, irreversivelmente, só porque um olhar salta o vazio entre duas janelas. (E isso não é por acaso: todo esse filme é sobre ver e ser visto, porque é disso que um país precisa depois de tantos anos de olhos fechados.) Mais tarde, nos filmes da maturidade de Almodóvar (os dos vermelhos e dos amarelos, a partir de meados dos anos oitenta), o desenho dos espaços mostra uma ideia de síntese que ele parece ter ido buscar ao teatro, ou à escrita para teatro (que é, também, a de um certo cinema clássico), onde se escolhe sempre os lugares onde melhor cabe e que melhor contam a história, os lugares sobrecarregados: e a história é a ocupação (inevitável) desses lugares. É por isso que alguns dos seus cenários parecem cenários de teatro (grandes bocas abertas para a frente), porque são os lugares da farsa e do melodrama: relógios de cuco, máquinas complicadas. Mas já nos primeiros filmes (menos teatrais, ou menos pós-modernos, se quisermos) lhe percebemos essa inteligência para os espaços: como no ¿Qué he hecho yo para merecer esto!, que é talvez o mais escuro e o mais cinzento dos filmes de Almodóvar, e é, provavelmente, o meu favorito. Ele explicava, na altura (o filme é de 1984), que os espanhóis que chegavam a Madrid vindos das aldeias eram mais ou menos atirados para aqueles feiíssimos blocos de apartamentos à margem da cidade, para casas estreitas e apertadas: e que isso também ajudava a explicar a infelicidade daquelas pessoas. E é verdade, o filme é sufocante, claustrofóbico: nem a câmara tem por onde se mexer. Só no fim do filme, quando o apartamento se esvazia de toda aquela gente, é que Almodóvar no-lo mostra, num plano contínuo: e só aí é que percebemos, finalmente, a arquitetura da casa. Parece o movimento que faz um agente imobiliário com o braço: como se aquela casa, agora que se esvaziou de pessoas, estivesse à venda: ou como se aquela mãe de família nunca tivesse, realmente, olhado para a sua casa. E parece estar a dizer-nos, também, que, a partir do momento em que são ocupadas, as casas se dividem, inevitavelmente, numa série de pequenas funções, e que nós (por vontade nossa: ou não, que é o mais provável) tendemos a desenhar nelas os nossos territórios e os nossos isolamentos, pequenos ou maiores.
5. No livro Abolish the Family: A Manifesto for Care and Liberation, Sophie Lewis fala de algumas das ideias do francês Charles Fourier, na viragem do século XVIII para o XIX. «Fourier identified the single-family dwelling as one of the chief obstacles to improving the position of women in the world. This fundamental insight inspired an international movement of utopic land projects, including some that sought to abolish the woman-crushing norm of the private kitchen in favor of so-called “kitchenless” cities – neighborhoods furnished with open common kitchens and superb free canteens.» Porque é que uma ideia tão simples parece hoje tão difícil de conceber? Há várias razões possíveis (vou ensaiar algumas). Por um lado, a cozinha foi redefinida (também pelo setor imobiliário), nas últimas décadas, como o coração da casa, como o lugar onde toda a família se junta (antes, o homem nem sequer entrava na cozinha): e isso talvez seja verdade (fantasticamente) na Itália e na Grécia que nos é vendida pelos livros e pelos programas de culinária. Mas mesmo nesses lugares (que são utopias de um passado rural: como quando, em alguns filmes, Almodóvar volta à sua aldeia), as avós e as mães não são só o centro da família: mas da comunidade toda. Cabe sempre mais um à mesa. Todas as cozinhas são comunitárias: e todo o trabalho é repartido. Por outro lado, é difícil pensar em cantinas abertas e gratuitas sem pensar, automaticamente, em duas pobrezas: a alimentar e a económica. (É difícil, porque somos condicionados a pensar assim: vejam a carga que tem a palavra cantina.) A solução, para a grande sociedade, é privatizar, é esconder essas pobrezas: fazer com que as pessoas levem envergonhadamente para casa as coisas de que precisam (e não, isso não resolve a pobreza alimentar), enquanto se engordam os bancos de alimentos (a imagem da caridade de um povo) e os lucros da grande distribuição. Seja como for, ao fim do dia, as mulheres chegam do trabalho e cozinham, cada uma na sua casa, para as suas famílias. No dia seguinte, a mesma coisa. Ou seja: se as casas não tivessem cozinhas, qual seria o lugar da mulher?
6. Fiquei a pensar em muitas destas coisas no dia do apagão: em como são frágeis as nossas redes de cuidado e em como estão tão dependentes das várias tecnologias, tanto que, quando elas falham (as tecnologias e, por isso, as redes de cuidado), a maior parte de nós recolhe instintivamente (isto é, acriticamente) às nossas pequenas bolhas, à casa, à família, e fica lá, à espera do pior. E isso está bem, diz a mesma grande sociedade, porque a família tudo provê, tudo resolve. Mas isso é verdade, imediatamente, para quantos de nós, deslocados na cidade, atomizados? Ainda assim, sei de pessoas que, no dia do apagão, tiveram amigos a bater-lhes à porta e jogaram jogos e foram o cuidado uns dos outros: e isso fez-me sorrir. Mas, atenção, nada neste sorriso quer romantizar seja o que for sobre aquele dia: longe disso. Acho que demasiadas pessoas precisam, desesperadamente, da sua história de guerra: do dia em que foram melhores e mais resilientes e mais corajosas do que alguma vez acharam que seriam. Sabem que mais? Que se foda isso tudo. A vida é todos os dias, e é sem razão aparente: como deve ser. Quando foi a última vez que cozinharam para os vossos amigos, sem nada para festejar, sem grandes combinações nem formalidades: apenas porque queriam e porque podiam? Pensemos mais nos nossos amigos, ativemos as nossas redes: pensemos nas pessoas que, nos dias bons e maus, gostaríamos que estivessem ali, perto de nós, no quarto ao lado.
Boa semana,
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