1. Pensei novamente, nestes dias de ausência, e de Natal e Ano Novo e aniversário, naquela frase do Pascal Quignard que partilhei há uns tempos nas histórias do Instagram, sem qualquer referência (como costumamos fazer com os poemas para que nos escrevam a perguntar de quem são). A fotografia dizia apenas: Sobre a tão difícil ideia de pensar uma comunidade composta unicamente por solitários – e não vos consigo dizer quantas pessoas comentaram a perguntar o que era, quem tinha escrito, a pedir para ver o livro, mesmo sem saber ainda que provavelmente não seria o tipo de texto que esperavam. Eu sei que tenho escrito aqui muito sobre redes, grupos e gerações, mas não ignoro que quando as linhas se cruzam somos nós que estamos nesse ponto, a sós.
E quem não se sente assim, quer escolhamos mostrá-lo ou não? A causa nunca é só uma (porque não está necessariamente relacionado com ter família, amizades e amores) nem o efeito um único: não podemos falar da solidão sem dizer o quanto isso nos prepara e sem dizer o quanto isso nos mutila e sem dizer o quanto isso nos dá. É um quarto só nosso, numa casa que não escolhemos; podemos, no entanto, decidir abri-lo. Pensar sobre relações, em extremo sobre erotismo (sem me conhecer, a Regina Guimarães disse em junho na livraria que todas as relações são eróticas e eu sorri), sempre foi para mim o outro lado da porta. Quem está de dentro e a quer aberta, porque as portas abrem para dentro, vê-lhe sempre ambas as faces.
2.
3. Uma pequena nota para a estreia da Casa Portuguesa de Pedro Penim com as Fado Bicha no TNSJ, esta quinta-feira 12: com o tempo, a relva cresce e a casa cobre-se de heras, que lhe prendem as portas, ao ponto de a estrutura se esconder e confundir com a natureza ao seu redor, torna-se mesmo natural, habitamo-la e habituamo-nos a ela assim; esse é o momento mais perigoso, quando encaramos como propriedade da nossa essência o que não é senão arquitetura tornada paisagem e nos esquecemos que, por baixo, continua a ser uma construção do seu tempo.
4. Reabrimos a livraria na segunda-feira 9. E as próximas conversas sobre referências LGBTQ na literatura já estão planeadas. No verão, fizemos 1875-1925 e, no outono, 1974-2022, ambas sobre literatura portuguesa. Sim, saltámos 1926-1973 de propósito, faremos o Estado Novo (com as suas camisolas verdes e amêndoas amargas) nas sessões da primavera deste ano. Temos primeiro de atravessar o inverno e até meados de fevereiro vamos ler textos brasileiros. Será de novo um conjunto de 6 sessões, mas necessariamente mais panorâmico do que as 18 (no total) de Portugal, como uma breve introdução a literatura do Brasil que eu gostava de vos ler em voz alta. Para quem nunca veio: lemos e comentamos textos em grupo e perguntamo-nos muitas vezes se ainda nos dizem alguma coisa. Arranca a 16 de janeiro e vai até 20 de fevereiro, todas as segundas às 18h.
5. Temos um nome, dão-nos um nome, melhor dizendo, fecham-nos nele como quem circula um ponto num mapa, e ainda não sabemos quem somos. O Caetano Veloso – que amo – escreveu no seu Verdade tropical algo muito bonito e triste sobre o Brasil: quando portugueses e espanhóis dividiram entre si o mundo que não conheciam, não faziam ideia de tudo o que lá estava, a diversidade, a terra, as plantas, as pessoas e os outros animais, nem quantos, nem até onde ia. O território já tinha, porém, a solidão de um nome que o definia, o queria finito, contável, percetível (talvez continue isto daqui a duas semanas). O Caetano chama, por isso, ao Brasil «esse enorme lugar-nenhum cujo nome arde». Mas não seremos nós, tantas vezes, também isso? Ainda sabemos lá quem somos e já temos um nome (e tudo o que vem por arrasto, e sabemos que vem: um género binário, as cores, as roupas, os brinquedos, as palavras, com quem passamos mais tempo, as expectativas). E depois, quando temos sorte, é uma vida inteira para desaprender, como diria o Manoel de Barros, outro brasileiro de quem gosto muito.
Há também uma entrevista deliciosa do Caetano com o Jô Soares (o Gilberto Gil também lá está, mesmo que praticamente não abra a boca, vejam aqui). Pouco mais de 20 anos depois da ditadura brasileira considerar Caetano «subversivo e desvirilizante», um jornalista acusa ambos os cantores de irem a um evento vestidos com «roupa de mulher», fazendo alarde da sua bissexualidade (reparem na confusão entre identidade de género, expressão de género e orientação sexual). O Caetano não se fica por meias palavras para o criticar, só que, mais interessante do que a fúria inicial, é o momento em que, já Jô passava o assunto para Gilberto, Caetano faz questão de voltar atrás e frisar: tudo o que acabou de dizer não é por considerar ofensivo estar associado a homossexuais e bissexuais, nem sequer ser visto como alguém que veste saias, porque, e vejam que frase, «nunca fizemos, mas seria interessante se tivéssemos feito; se tivéssemos feito de uma maneira maravilhosa, seria genial». Estávamos em 1991.
Na livraria, têm esta próxima e última semana para ver a exposição do Miguel De sobre masculinidade – provavelmente a mais solitária e melancólica que já tivemos – e continuarmos esta conversa.
6. Uma escolha muito pessoal de seis curtas e longas da década de 1910, para terminar
, Les résultats du féminisme – The Consequences of Feminism (Alice Guy 1906)
, L'orgie romaine – Heliogabalus, Tyrant of Rome (Louis Feuillade 1911)
, A Florida Enchantment (Sidney Drew 1914)
, Behind the Screen (Charles Chaplin 1916)
, Ich möchte kein Mann sein – I Don't Want to Be a Man (Ernst Lubitsch 1918)
, Anders als die Andern – Different from the Others (Richard Oswald 1919)
Eu sei que a curta de 1906 não pertence ao grupo e poderia perfeitamente ser substituída por Algie, the Miner de 1912, mas é muito importante, ao pensar este tipo de referências no cinema, não esquecer a relação primeira das causas LGBT com o feminismo. Se a homofobia parece estar enraizada num sentimento anterior de misoginia, muito do policiamento que fazemos aos nossos corpos vem desse medo cultural de «parecer mulher». A maioria destes filmes lida, de uma forma ou outra, com o cross-dressing como forma de gag, é o humor de uma época de homens na guerra e mulheres sozinhas (que é os anos 10 do século XX e de todos os séculos anteriores também). O que encontramos aqui que ainda nos possa dizer alguma coisa?
estarei com vocês neste ciclo de leituras!
a propósito de Caetano, Brasil e América Latina: https://www.facebook.com/bbcnewsbrasil/posts/10159276218027816