Profissão: livreiro
«Yeah, you could call me a small business owner / Living in America, while trapped in the body of / An operatic diva / Hmm, I'm such a soprano» (Model/Actriz)
1. Quatro anos depois, ainda não sei o que é ser livreiro. Afinal, o que é um livreiro? Vamos por partes. Um livreiro abre ou mantém aberta uma livraria: é a pessoa da chave logo de manhã. Um livreiro paga a renda, paga a conta da internet e da luz e da água, varre o chão, sacode o pó das estantes. Entretanto, começa o dia. Chegam os clientes: um livreiro sorri-lhes, diz-lhes «bom dia». E, se eles perguntarem alguma coisa, um livreiro sabe dos livros: os que saíram e os que vão sair. Um livreiro escolhe os livros que quer vender, encomenda-os, fala com as editoras, com as distribuidoras. Um livreiro recebe as caixas dos livros, abre-as, confere as faturas, cataloga os livros, etiqueta-os, arruma-os nas estantes. Um livreiro sabe o alfabeto. Um livreiro lê os livros que chegam, ou, pelo menos, folheia-os, para perceber o que eles são: porque as editoras e os comerciais muitas vezes nem isso sabem dizer. Um livreiro sabe explicar um livro, sabe levá-lo à pessoa que precisa dele. De onde se subentende que: um livreiro lê o cliente, o que entrou e, também, o que não entrou ainda. Mais: um livreiro ouve o cliente, nos dias em que mais ninguém o faz. Entretanto, um livreiro fecha para o almoço: e depois volta. Um livreiro muda a água das flores, rearruma os bancos e as cadeiras. Em cima de tudo, um livreiro ainda acha que é designer gráfico e que entende de redes sociais. Um livreiro apresenta quem escreveu os livros às pessoas que os vão ler: e sorri quando eles gostam de se conhecer. Um livreiro toma nota das compras do cliente, recebe o dinheiro, faz o troco. Um livreiro embrulha os livros que são presentes e as compras que são encomendas: as últimas, um livreiro leva-as aos correios. Um livreiro passa muito tempo sem fazer nada, ou a pensar noutros trabalhos que tem de fazer. Porque um livreiro pode receber um salário de livreiro, ou não. Semana sim, semana não, um livreiro escreve uma carta: como esta. E, no fim do dia, um livreiro apaga as luzes, fecha a porta, e vai para sua casa. E, mesmo assim, depois de ter feito isto tudo (e o Paulo faz isto tudo mais e melhor do que eu), o livreiro pode não se sentir, exatamente, um livreiro, porque ainda não sabe bem o que isso é.
2. Nada a ver (tudo a ver): um dos filmes que Jafar Panahi fez desde que o regime iraniano o proibiu de filmar, em 2010. Chama-se Taxi. É o próprio Panahi quem está ao volante: e, como quase sempre nos filmes dele, tudo é realidade e tudo é ficção. Um dos passageiros que ele recolhe diz isso mesmo: que os dois passageiros que acabaram de sair têm de ser atores, porque estavam a citar uma cena de outro filme de Panahi. Mas e esse passageiro: não é ele um ator a partir do momento em que vê as câmaras no tablier? Ou não foi ele sempre um ator? E isso importa? Enfim, esse passageiro reconhece Panahi, porque já lhe tinha vendido filmes pirateados: filmes que, de outra forma, não entrariam no país. (De que vale proibir, parece ser a razão de Panahi, se os filmes continuam a ver-se e a fazer-se?) Uns minutos à frente, Panahi leva o homem a casa de um cliente, um estudante de cinema (claro): que se aproxima do táxi a medo, porque acha estranho ver um realizador conhecido, assim, metido com um contrabandista. (E com câmaras no tablier.) Panahi diz-lhe que não tem nada a ver com ele, que só o está a transportar. Mas quando o rapaz lhe pergunta que filmes levar, de dentro do saco, e lhe passa alguns para a mão, Panahi vê o que há, um a um, e escolhe dois ou três.
3. De vez em quando, ainda vem cá alguém (alguém que vem poucas vezes, ou que veio agora pela primeira vez), que, antes de se ir embora (pagou, guardou o que comprou, está de saída), pergunta: «então, como está a correr?». E eu percebo de onde isso vem: curiosidade, ou interesse, ou preocupação. Mas parte de mim morre sempre um bocadinho: da obrigação de sorrir a essa pergunta (também é isso, ser livreiro). Porque há duas respostas para essa pergunta: uma breve e uma mais longa. A breve é: «vai indo, vai andando, está difícil para todos», e talvez isso, simplística, portuguesmente, seja verdade: afinal, os livreiros com quem falámos (e eu sei que a nossa amostra é incompleta) dizem-nos que foi má a Feira do Livro de Lisboa este ano, o que significa (julgo eu) que as pessoas não estavam, sequer, a guardar-se para os descontos: significa que, simplesmente, não estão a comprar livros, ou, pelo menos, não os livros que nós (os livreiros independentes e as pequenas editoras) vendemos. Ainda há poucas semanas, o nosso contabilista disse-nos, mais ou menos por estas palavras, que era importante nós aumentarmos a nossa faturação. E eu, que não sou formado em contabilidade, pensei: de facto, não me tinha ocorrido, obrigado, Jorge, não sei onde tinha a cabeça, vou já tratar disso. Mas a resposta longa é mais complicada, porque não se pode esconder atrás de estatísticas e volumes de vendas. E se eu não sei o que é um livreiro, por que haveria de saber o que é uma livraria, ou como se faz? Sei (e mal) o que é a nossa livraria, esta livraria, para nós e para as pessoas que falam connosco sobre isso: e nenhuma das respostas fala de dinheiro, nem sequer (vou ser mesmo honesto convosco) de livros. Os livros são só onde estão as ideias que temos hoje, ou que vamos ter um dia. São pretextos: são manuais que ajudam a lermo-nos uns aos outros. Todas as pessoas que, hoje, fazem parte do meu dia (umas mais próximas, outras mais distantes, a vida é assim) vieram com a livraria. São as minhas pessoas. No dia em que a livraria fechar, nós somos a rede que vai ficar como risco na pedra, ou como réplica. Este ano, a Jó Bernardo veio cá e perguntou-nos, ela também, como é que as coisas estavam a correr. Mas aí é diferente: porque a Jó e o companheiro dela, o Alexandre (noutra cidade e noutra altura, claro), passaram por muito daquilo que nós estamos agora a passar, as coisas boas e as más. Já falámos dela tantas vezes: foi a primeira pessoa a abrir uma livraria LGBT em Portugal, em 1999. Segurou-a aberta até 2005: e, durante esses anos, a Esquina cor-de-rosa foi mundo e abrigo e fuga para muitas pessoas, à frente e atrás do balcão. Perguntou-nos como corriam as coisas: e nós respondemos, algures entre a resposta breve e a longa. E ela disse: pois, é como ter um bebé. (Um bebé ou uma criança, já não sei.) E eu pensei: de facto. Durante uns dias, essa frase trouxe-me alguma paz no meio da confusão toda, da dúvida, da incerteza, como se fosse esta, afinal, a minha herança, como se eu estivesse a pôr aqui o meu tempo e o meu trabalho e o meu dinheiro por achar que sim, que esta criança-livraria precisa de existir: para pensar ideias novas, para ser coisas diferentes para pessoas diferentes. Mas é tão difícil segurar uma criança todos os dias, ou um negócio independente, ou um pássaro, ou o que for. É tão difícil não deixar cair alguma coisa.
4. Amanhã, sábado, dia 28, faz quatro anos desde que a Livraria abriu. Este ano, ao contrário dos anteriores, não nos apeteceu comemorar o dia com uma semana de eventos. Pode ser que voltemos a fazê-lo nos próximos anos, pode ser que não. Vou confessar-vos outra coisa (hoje é só confissões): aconselharam-me a não escrever um texto triste e amargurado na semana do aniversário da Livraria. Que é mau comércio. Mas querem o quê? É assim que eu estou. Seja como for, apesar de tudo, amanhã, sábado, dia do nosso quarto aniversário, a Livraria está aberta: e, cada vez mais, dizer isso é uma nota de intenções e um programa e uma declaração de teimosia. Podem passar por cá a caminho da 20.ª Marcha do Orgulho, que, pela primeira vez (por uma sorte de calendário), acontece no dia em que a Livraria faz anos. Começa nos Aliados (não se enganem) e termina, como já é costume, no Largo Amor de Perdição (junto ao jardim da Cordoaria). É isso: passem cá, abracem-nos, comprem um livro que vos caiba bem no saco, ou não, não comprem livro nenhum, mas abracem-se, segurem-se, protejam-se. É tão difícil, às vezes, resistir. A meio da tarde, fechamos a porta e vamos, nós e vocês, por aí, a rasgar a cidade. Vemo-nos lá, e depois, terça-feira, e todos os outros dias a seguir, vemo-nos aqui: até deixarmos de estar aqui.
Boa semana,
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