Ricardo Braun dirige-se ao ano 2000
«The world of heterosexuals is a sick and boring life.» (Aunt Ida)
1. Há umas semanas, no meu Instagram, fiz uma pergunta às pessoas no intervalo (em que eu também estou, pessoas) entre os trinta e cinco e os quarenta e cinco anos. Perguntei-lhes se diriam (interessa-me, acima de tudo, a perceção que cada pessoa tem: portanto, se diriam) que têm muitos ou poucos amigos com menos de trinta anos. A amostra foi inconclusiva. Muitas pessoas disseram que tinham poucos ou nenhum. Uma ou outra disse que tinha muitos. Mas as respostas não foram suficientes, ou foram incompletas: e acabei por não chegar a nenhuma conclusão. Esta semana, virei a pergunta ao contrário (mais ou menos): e perguntei às pessoas com menos de trinta anos se diriam que têm muitos ou poucos amigos com, pelo menos, mais dez anos do que elas. Desta vez, recebi mais respostas (o que também pode ser um retrato do meu Instagram). A maior parte das pessoas disse que tinha poucos. Algumas pessoas disseram: amigos não, mas conhecidos e amigos de família sim, vários. É muito curioso este conceito de amigos-de-família: como se algumas pessoas, porque chegaram até nós por intermédio de outra pessoa (mas isso não é verdade dos amigos todos?), ou, então, porque têm a idade dos irmãos ou dos pais, não pudessem ser amigos nossos, não pudéssemos reclamá-los para nós. Porque a idade, convenhamos, é a questão toda. Aliás, muitas pessoas notaram, especificamente, os dez anos de diferença (na pergunta): que não tinham amigos dez anos mais velhos, mas cinco, sete anos mais velhos, sim. Inconscientemente, pensamos: o que é que eu posso ter em comum com pessoas dez anos mais novas ou mais velhas do que eu? O trabalho que fazemos, talvez: e para além disso? Chegamos, então, a (mais) algumas perguntas: porque é que isto acontece (esta separação das águas)? (Suspeito algumas, ou muitas, das razões: mas já lá vamos.) E: o que é que resulta disso? Tudo isto porque: nos últimos anos (desde que abrimos a livraria, basicamente), fiz vários amigos mais novos do que eu, muitos deles pelo menos dez anos mais novos do que eu. Esta, hoje, é a minha carta de amor a essas pessoas.
2. O que nos leva (ainda) a outra questão: o que é um amigo? Quando eu era mais novo, e até há bem poucos anos, um amigo era quase uma impossibilidade. Pressupunha uma tão grande dedicação, disponibilidade: devoção. Dizer que alguém era um amigo (atrever-me sequer a dizê-lo ou a pensá-lo) era o acabar de um processo lento, difícil: era a história da minha rendição. (Que palavras complicadas, todas estas.) E, por isso mesmo, porque a definição era tão dura, eu não podia, honestamente, dizer que tinha amigos. Aos poucos fui-me convencendo disso, de que não os merecia. Entretanto, passaram os anos, e a minha definição de amigo foi relaxando, e mudando: muitas vezes, muda de pessoa para pessoa. Um amigo, hoje, é muitas coisas diferentes. Ainda assim, no meio de toda essa diferença, é muito fácil de explicar: se eu vejo alguma coisa de que gosto, ou leio, ou ouço, e me apetece mostrá-la a alguém (partilhá-la, falar-lhe da minha alegria), essa pessoa é um amigo. É simples e é isso: um amigo é uma conversa que não acaba. E, de vez em quando, vejo os meus amigos a chegarem, sozinhos, às coisas que foram importantes para mim quando tinha a idade deles, e que ainda são, filmes, livros, canções: e começo sempre a sorrir, porque me enternece a curiosidade dos outros mais do que qualquer outra coisa. Mas, sublinho: tudo o que eu acabei de dizer é verdade para mim, agora. Esta amizade (minha, pessoal) é a forma mais egoísta que eu descobri de não ser egoísta. Não valida nem invalida o que é um amigo para vocês: que provas é que tem (ou não tem) de passar para o ser, que palavras, que atos, que omissões.
3. Em 1962, o poeta e realizador francês Jean Cocteau (é tão difícil explicar o Cocteau) fez um filme, de vinte e poucos minutos, chamado Jean Cocteau s’adresse… à l’an 2000. Começa de uma forma muito bonita. Está o Cocteau sentado a uma mesa, de frente para nós (é só isso o filme todo) e diz: «Não sei se esta casa ainda existe». Ao dizer isto, também está a falar dos livros que escreveu, dos desenhos e dos filmes que fez. Aliás, na pedra tumular do Cocteau pode ler-se uma frase muito simples, «je reste avec vous», que é uma promessa e uma ameaça e um desejo. Quando gravou esta carta ao futuro, Jean Cocteau tinha setenta e três anos: haveria de morrer no ano seguinte. É assim que a Wikipedia conta a morte dele. (Abra-se o livro dos mitos.) Jean Cocteau morreu a 11 de outubro de 1963, depois de um ataque de coração: é que a Édith Piaf, que era amiga dele, tinha morrido no dia anterior, dia 10, mas a notícia só lhe chegou no dia 11. «[I]t has been said, in a story which is almost certainly apocryphal, that his heart failed upon hearing of Piaf’s death». Na verdade, não me interessa nada saber se isso é mentira (há meses que a saúde dele estava frágil, e o próprio Jean Marais, no dia seguinte, começa a tentar desfazer essa ideia): e não me interessa porque não me ocorre melhor maneira de explicar a amizade (a amizade toda: quando ela começa, enquanto dura e, depois, quando acaba) do que chamar-lhe, simples, poeticamente, um ataque de coração.
4. Vamos, então, investigar as (possíveis) razões para este estado das coisas: a estreiteza da amizade. A culpa (lamento dizê-lo) é dos heterossexuais. Imaginem que são um desses heterossexuais (deus me livre). No princípio, são crianças, e têm os amigos que as crianças têm. Depois, passam de escola em escola, e têm os amigos que os jovens têm: acham que os estão a escolher, mas não estão. A seguir, arranjam um emprego, e já não têm amigos, exatamente, mas uma espécie de amigos-na-produtividade, que são os colegas: e falam uma língua técnica, cifrada, e não sabem falar de mais coisa nenhuma, porque há a ideia (tristíssima) de que a especialização vem ao preço da curiosidade. E, depois (que é o mais certo), casam e têm filhos, e dão-se com os pais das outras crianças. E morrem assim, aos poucos, desta repetição. É o que diz a Aunt Ida, no Female Trouble, ao sobrinho que ela gostava que fosse gay: «I worry that you’ll work in an office, have children, celebrate wedding anniversaries». Nós, que não somos heterossexuais e, por isso, não temos algumas dessas cadeias (esse túnel, ou esse rio do tempo), fazemos o mesmo: gravitamos para tudo o que é igual a nós, para as pessoas que vivem vidas iguais às nossas e que têm os mesmos problemas que nós, ao mesmo tempo que nós. Porquê? É o mundo do trabalho, sim, e a falta de tempo e os limites do coração, mas podemos, e devemos, tentar outras coisas, e procurar a amizade noutros lugares.
5. Lembram-se (as pessoas como eu, que nasceram na segunda metade dos anos oitenta) de como nós gozávamos com os filhos dos anos noventa (pessoas que eram pouco mais novas do que nós) por não saberem o que era um videogravador, por nunca terem visto uma cassete VHS? Éramos tão idiotas. E cada geração (antes e depois da minha) há de ter os seus objetos, tecnologias, produtos, coisas que foi ela a última geração a ter, a usar, e de que é ela (por dever de idade e de memória) a guardiã, a historiadora. Muitas vezes, é só essa a missão das nossas vidas. (Estou a exagerar menos do que parece.) Mas que história é esta, que se conta em intervalos tão estreitos? É como se tudo o que se segue aos anos da nossa definição (isto é, a infância, a adolescência, os anos das várias escolas: tudo até chegar a idade adulta e começar a vida a sério, que triste, mas, dizia eu, como se tudo o que viesse a seguir) fosse uma espécie de pós-história, que já não nos diz respeito. Como se tudo o que é novo viesse à custa do que é velho, e falasse uma língua secreta, incompreensível, feita com o propósito, apenas, de nos deixar lá fora, à porta. Mas isso não é verdade: é uma paranóia dos velhos. E se, de facto, os novos só ligam ao que é o novo, então: já são velhos e ainda não sabem.
6. Eu estava lá, no ano 2000. Tinha treze anos. Nem caiu uma pedra do céu, nem os computadores deitaram abaixo bancos e aviões. O mundo não acabou. (Disseram que tinha acabado o milénio, mas foi engano.) Não éramos robôs, mas também não nos tínhamos humanizado. Depois, nem uma coisa nem outra, cresci. Durante muito tempo, não achava sequer possível que alguém nascesse depois do ano 2000. Mas os anos foram passando, e essas pessoas (filhas do ano 2000) foram crescendo, e começando a ter gostos e interesses e opiniões e mundos interiores: estranhos e belíssimos e complicados. E começaram a deixar coisas feitas no mundo. Hoje, têm vinte e cinco anos. Hoje, penso nelas e começo a chorar: de um sorriso e de uma ternura profunda. Gosto tanto de tantas pessoas do ano 2000 e dos anos seguintes (as crianças primeiras deste século), amigas, conhecidas, pessoas que admiro ao longe: que se fossem elas, hoje, a pegar no mundo para tomar conta dele, eu ficava contente. O mundo ficava em boas mãos: mãos curiosas, inteligentíssimas. Têm problemas, claro: de muitas formas, o mundo foi-lhes mais e menos complicado do que foi para nós. Por um lado (bom), não tiveram de decidir para si, tão cedo na vida, rótulos e categorias que não lhes serviam: porque, para nós (e não foi assim há tanto tempo), a identidade (qualquer uma, de todas as identidades possíveis) era um direito que vinha com a idade adulta: como uma casa que se compra para a vida toda. Por outro lado (mau), sabem lá eles o que é comprar uma casa. Nasceram um número de anos mais perto do fim do mundo. («It’s worse, much worse than you think».) Seja como for, e tal como o Cocteau, lá atrás, a falar para uma casa que pode já não existir, numa língua que pode já não saber reproduzir-se, mas com a esperança de que a casa exista e a sua voz se ouça, ainda («em estado de fantasma»): dirijo-me, eu, hoje, aqui, ao ano 2000, com sonho e com futuro. Vi os teus filhos (eu, que sou teu enteado) e gosto deles: gosto da maneira como estão no mundo. Aprendo com eles muitas coisas. Já diz o Cocteau (outra vez), a dada altura daquele filme: «Conhecem, certamente, o grande pintor que se chama Picasso» (esperamos que o nosso dinheiro ainda valha no futuro) «e o Picasso dizia-me: demoramos muito tempo a tornar-nos jovens».
Boa semana,
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