1. Várias eram as formas possíveis de começar, nós fizemo-lo pelo fim. Lá está Gilgameš no Épico a chorar a morte do amigo e Aquiles na Ilíada a chorar a morte do amigo e David na Bíblia a chorar a morte do amigo. E por isso é que, pensando nos livros que vamos ler amanhã na aberta, com o Miguel que os traduziu, e o Francisco e a Verónica da maio maio que editou um deles, gostava de dizer muito simplesmente que também são poemas eróticos, no sentido em que falam do desejo.
Num texto do século XXI a.C., Gilgameš inspeciona metais, minerais e pedras preciosas e oferece ao amigo obsidiana, cornalina, alabastro, ouro, marfim, ferro; num texto do século XXI d.C., Halpern vai mais longe na enumeração: «Osso, junta, tripa, tubo, glande, ferida, rocha, céu, pássaro, pedra, lenha, musgo, pêlo, sol, renda, trinco, estrume, cotão, mofo, célula, estrela, dente, zinco, carne» (que bonito).
Isto permite-nos pensar num poema-de-amor que não seja sobre a pessoa amada, que aspire a esquecê-la, contando-lhe ao invés a memória, a história, a sociedade, a política. Eu sei que parece um paradoxo, algo condenado a falhar, mas esse fracasso é, em si mesmo, uma potência: desenhar um círculo em volta de uma coisa define-a, fecha-a, torna-a sagrada; deixar que o ponto se arraste ao seu redor, umas vezes mais perto, outras sem a ver, é deixar que ela respire, se mova, seja tudo o que quiser.
Em Os vitoriosos, Chris Nealon fala de armas, música de dança, da Al-Jazeera e um mundo em chamas. Em Tocar os vazios no sentido, Rob Halpern fala de feridas, doenças, de Guantánamo e, de todos os buracos que refere, o do cu, diz-nos, é o menos importante. Em ambos está lá a morte do amigo (o Peter de Chris, o James de Rob), mas – para usar uma expressão de que gosto muito – o cio é cubista, come a morte por todos os lados e em alguns desses lados o amigo nem está sequer presente (estão outros, quando muito, e às vezes poetas: ambos referem Artaud, por exemplo).
Ao mesmo tempo, parece-me, é uma maneira justa de homenagear quem amamos: reconhecer no outro o direito à sua variedade (de prisões e lugares imaginários), que não pode ser reduzida a um mero assunto. E uma maneira justa de homenagear a errância do próprio desejo.
2.
3. Dois interlúdios de 2019 para uma coreografia de V., que gostou daquele poema de T.
, Solange – Can I hold the mic?
I can't be a singular expression of myself,
There's too many parts too many spaces
Too many manifestations too many lines
Too many curves too many troubles
Too many journeys too many mountains
Too many rivers so many
, Moses Sumney – Also also also and and and
I insist upon my right to be multiple
I insist upon my right to be multiple
Even more so I insist upon
The recognition of my multiplicity
All things encompassed in one
I I really do insist that others recognise my inherent multiplicity
What I no longer do
Is take pains to explain it or defend it
That is an exhausting
Repetitive
And draining project
To constantly explain and defend one's multiplicity
So I've reached a point where
I am aware of my inherent multiplicity
And anyone wishing to meaningfully engage with me or my work
Must be too
I can also also also also and and and
4. No domingo 22 às 16h, recebemos na aberta a primeira sessão do grupo de leitura da Odete. A utopia The Blazing World (1666) de Margaret Cavendish começa esta breve história da especulação: um texto do século XVII em que uma mulher é criadora e também imperatriz e também líder militar (com um vestido de diamantes, pedras-de-fogo, estrelas e vestes de luz) do seu próprio mundo de homens-aranha, homens-formiga, homens-ganso, homens-gralha, homens-macaco, homens-mosca, homens-pega, homens-piolho, homens-urso, homens-verme, sátiros e sereias; um mundo só seu criado por si para esse efeito.
«Since Fortune and the Fates would give me none, I have made a world of my own». Não sei por que a Penguin não incluiu este texto do seu catálogo na antologia The Penguin Book of Feminist Writing, editada em 2021. Bastaria, se nada mais fosse, a última linha do Epílogo, em que sugere que, qualquer pessoa que «cannot endure to be subjects, they may create worlds of their own, and govern themselves as they please», oferecendo-se ela própria, caso seja necessário, não a dar o Mundo Resplandecente (que esse ficou para a sua amiga platónica), mas «to create another world for another friend».
5. O Lince enviou-me a sinopse para a sua próxima exposição, li e disse-lhe que ele tinha escrito um soneto. Na quinta 26 às 18h, inauguramo-la.
Seja quem for que veio antes de nós, deixou-nos em herança desenhos de animais, nas cavernas e nas constelações. As estrelas ouvem é a proposta do Lince Rebelo para este inverno: um conjunto de telas e azulejos com os olhos virados umas vezes para baixo e para dentro, outras para cima e para fora.
6. Uma escolha muito pessoal de seis curtas e longas da década de 1920, para terminar
, Le ménage moderne du Madame Butterfly (Bernard Natan 1920)
, Salomé (Charles Bryant 1922)
, Michael – Chained: The Story of the Third Sex (Carl Theodor Dreyer 1924)
, Wings (William A. Wellman 1927)
, Geschlecht in Fesseln – Sex in Chains (William Dieterle 1928)
, Die Büchse der Pandora – Pandora's Box (Georg Wilhelm Pabst 1929).
A lista desta semana inclui o primeiro porno bissexual de que há memória, um filme de dança com Alla Nazimova e (reza a lenda) um elenco inteiro de pessoas LGB, um pintor e um modelo, dois homens que se beijam na guerra (e a morte do amigo), uma prisão e uma femme fatale.