1. Vezes sem conta, o desespero ganha; hoje, por isso, e depois das últimas semanas, a minha carta é sobre finais felizes – a Llansol é que começava o seu primeiro livro com a frase «O homem é feliz enquanto o seu desespero for igual à sua esperança».
O inglês Edward Carpenter, por exemplo. É uma história bonita. Em 1891, num comboio de regresso da Índia, Edward de 47 anos conhece o operário George Merrill de 24 (nesse mesmo ano, Oscar Wilde viria a conhecer Alfred Douglas). Cético da industrialização e fascinado pela poesia de camaradagem de Walt Whitman, Carpenter já então era conhecido por lutar pelos direitos dos trabalhadores e, ao longo da sua vida, foi apoiando causas abolicionistas, feministas e ecológicas e escrevendo defesas da homossexualidade (há certamente frases suas que poderíamos discutir, ninguém deixa de ser um homem do seu tempo, não precisamos de o endeusar: o que fez de bom foi suficiente para o admirarmos).
Whitman morre, alguns anos passam e Edward e George começam a construir a sua vida (nota: esta carta não é sobre casais e monogamia; aliás, se tiverem de escolher, deixem para lá as minhas histórias e vejam isto, que é a coisa mais bonita que vão ler hoje) e a verdade é que conseguiram fazê-lo, viveram mais de 30 anos juntos. Poderia voltar ao paralelo com Oscar Wilde, mas hoje não: pensem só no que de profundezas e cravos verdes acontecia a um na sociedade vitoriana enquanto o outro vivia feliz no campo. O exílio rural de Carpenter, claro, foi o preço a pagar por um final de vida livre. «Feliz», «livre», tudo isto são projeções minhas para contar a história à minha maneira (acabo de escrever «à minha mãe», ato falhado, corrigi).
Final feliz: George morreu em 1928, Carpenter morreu logo no ano seguinte (sim), apenas quatro dias antes da estreia da opereta Bitter Sweet de Noël Coward, que, distanciando-se ironicamente do século anterior, punha os homens a sublinhar:
And as we are the reason
For the nineties being gay
We all wear a green carnation.
2.
3. Em 1913, outro Edward inglês visita Carpenter e Merrill no campo. E.M. Forster tinha 34 anos e publicada a maioria da obra que lhe conhecemos. Ele, que quase só escrevera sobre a sua frustração perante as relações (de amor, poder e classe), terá ficado tão inspirado com o que viu que no ano seguinte já tinha o primeiro rascunho de Maurice, romance sobre dois homens de classes sociais diferentes que terminam juntos e têm o seu final feliz. O «primeiro romance gay que acaba bem» não é certamente dele, quanto mais não seja outro Edward (Prime-Stevenson, este americano) já escrevera em 1906 Imre: A Memorandum, mas a influência, como vão ver, é inegável, senão para ele, pelo menos para outras pessoas.
Alguns anos depois, no Egito, Forster conhece (no sentido bíblico) um soldado no deserto e nunca mais voltará a escrever como antes. Que romance, que conto valem mais do que a vida? A verdade é que muita da sua obra que ainda hoje lemos é anterior a 1917: depois ainda fez teatro, ensaios, alguns contos, um romance sobre a Índia, mas houve de facto uma viragem nessa travessia. Que bom para ele. Só por hoje, vou ignorar a enorme tristeza da secreta vida lavanda de Forster, de que é prova o facto de os seus textos homoeróticos só terem vindo a público postumamente, tanto o Maurice (continuamente revisto ao longo da vida e publicado em 1971) como alguns contos de The Life to Come (sim). Prefiro lembrá-lo com esta passagem de Howards End:
the rainbow bridge that should connect the prose in us with the passion. Without it we are meaningless fragments, half monks, half beasts, unconnected arches that have never joined into a man. (…) Only connect! That was the whole of her sermon. Only connect the prose and the passion, and both will be exalted, and human love will be seen at its height. Live in fragments no longer. Only connect and the beast and the monk, robbed of the isolation that is life to either, will die.
4. (Este ponto começa com uma história que pode ou não ser verdade, acham que a História também não tem dessas?)
O manuscrito de Forster circulou e foi lido pelos amigos e, se tiver ido parar às mãos de D.H. Lawrence, isso pode explicar como o amor hetero de John Thomas e Lady Jane (que não são os nomes das personagens, mas vou deixar que sejam vocês a descobrir) passou a fazer as vezes do amor gay de Maurice e Alec. Lady Chatterley’s Lover foi publicado em Itália no ano em que morreu Merril e em França no ano em que morreu Carpenter. No romance, uma senhora que vive insatisfeita com o marido, paralisado desde a Primeira Guerra, descobre que ainda vai a tempo de ser feliz se for dona do seu próprio corpo, através da relação que constrói com o jardineiro.
Apesar da releitura heterossexual (não se preocupem, há muitas outras coisas mais pansies na obra de Lawrence), o livro não deixa de ser um incrível testemunho feminista, da igualdade das classes sociais e do respeito pela natureza. Até aos anos 60, da revolução sexual, o livro foi circulando, às vezes em segredo, em diferentes versões, tanto por variações do autor como por imposições legais (foi muitas vezes censurado por ter demasiadas «then-unprintable-four-letter words»). De tantas edições e cortes no original, e por causa das nossas respetivas ditaduras, Portugal e Brasil têm uma longa tradição de péssimas traduções do romance (volto a elas mais à frente). Final feliz: Lawrence deixou escrito o que quis e morreu logo em 1930, não teve de aturar nada disto.
5. Falando no Brasil, e enquanto duram na aberta as conversas sobre referências LGBTQ na sua literatura, esta história não precisa de ser só de homens ingleses. Duas mulheres que também descobriram a sua forma de alegria como ato revolucionário:
Em 1948, Cassandra Rios tem 16 anos (sim) e publica dois romances eróticos: uma história de amor lésbico, A volúpia do pecado, e uma história de amor hetero, Carne em delírio. Reza a lenda que começou por procurar um emprego para poder pagar edições próprias, mas a mãe odiou a ideia de a filha trabalhar e prometeu dar-lhe o dinheiro em segredo, com a condição de não ter de ler os livros. Abrimos Carne em delírio e lá está outra mulher insatisfeita, cativada por outro «bicho do mato», desabrochando como «flor silvestre». Como é que isto não haveria de ser um dado adquirido para Rios se Chatterley já era traduzido no Brasil desde os seus 6 anos?
Cassandra – nome artístico (não pensemos por hoje na tristeza do pressuposto de tal nome) – tem vários epítetos, como a Safo de Perdizes (o seu bairro em São Paulo) ou a «autora mais censurada pela ditadura brasileira» (e processada mesmo antes do início da ditadura, acrescento). Escreveu sobre sexo (de todo e qualquer tipo que possam pensar, mesmo os tabus mais difíceis de digerir) e, como isto do licencioso é maravilha, mas só se for «literatura de homens» escrita por Eça de Queiroz (se quiserem, também podemos falar disso), às vezes publicava com pseudónimo masculino só para provar que os homens são uma merda e não gostam destas histórias apenas quando são escritas por mulheres: final feliz.
Em 1988, Hilda Hilst lê Chatterley e deixa notas nas margens do seu exemplar (vejam aqui). A história de Hilda também é bonita. Nasceu no ano em que morreu Lawrence, publicou poesia desde os anos 50, mas não se sentia lida, apreciada, satisfeita. Até que vieram os anos 80 e a intelectual se cansou e disse: está bem, vou escrever pornografia e gozar convosco. E, isto digo eu, se for pornografia, há de ser a mais bem escrita que já lemos, o que é uma vingança deliciosa e um gesto que me diverte. Escreveu sobre sexo (de todo e qualquer tipo que possam pensar, mesmo os tabus mais difíceis de digerir) e as metáforas excessivas – e as traduções questionáveis – de Lawrence para falar do desejo acabariam por aparecer em muitos dos livros da sua «tetralogia obscena».
Já não estamos, no entanto, nos loucos anos 20, o tempo é outro e epidémico. Quando Lawrence escreve «But now the body is coming really to life, it is really rising from the tomb. And it will be a lovely, lovely life in the lovely universe, the life of the human body.», Hilst anota: «60 anos depois, a AIDS! Lindo mesmo!». Sim, triste ironia, mas ela própria dizia que a literatura (a erótica, no caso) podia ajudar nesse contexto: era tão perigoso fazer sexo que o melhor era sublimá-lo (Forster concordaria) e as pessoas podiam ter prazer deitando-se juntas a ler (Carpenter concordaria). Ou não tenho jeito para isto ou, por vezes, os finais felizes são mesmo só «happy endings».
6. Uma escolha muito pessoal de seis curtas e longas da década de 1930, para terminar
, Borderline (Kenneth MacPherson 1930)
, Morocco (Josef von Sternberg 1930)
, Mädchen in Uniform (Leontine Sagan 1931)
, Le sang d'un poète – The Blood of a Poet (Jean Cocteau 1932)
, Lot in Sodom (James Sibley Watson e Melville Webber 1933)
, Bringing Up Baby (Howard Hawks 1938).