hoje é o último dia dos primeiros dois meses de 2025: ano após ano, vamos aprendendo, ou pelo menos devíamos (não sei se desta vez soubemos fazê-lo muito bem), a lidar com o inverno, com as longas horas silenciosas na livraria e este ano com o luto, até a voz se foi por um dia. E, claro, vamos tentando estratégias para seguir, para ficar, para sobreviver. Estou a falar da livraria, mas também de nós, por que não. E é quase injusto resumir assim a tristeza sazonal e o estado do mundo quando tantas pessoas e filmes e momentos nos confortaram (não desistam já desta carta, ela não vai ser triste): a presença do Ricardo Marques no Porto, por exemplo, para apresentar a antologia de poesia gay europeia que ele próprio selecionou, traduziu e editou, Quiseram enterrar-nos: não sabiam que éramos sementes. Ou Vidas de Lázaro, o novo livro do Amândio Reis que está quase quase a chegar. Ou, eu sei que ainda não falei delas por aqui, as conversas mensais em Lisboa que têm corrido tão bem, têm sido tão bonitas e tão cheias de gente com vontade de ouvir e partilhar. Se soubessem como não estou a exagerar. Pelo Porto, entretanto, também já comecei e acabei o grupo de inverno, foram seis terças a ler autoria dos Estados Unidos da América e rapidamente percebemos que, do tanto que Portugal traduz da literatura americana, poderemos organizar mais grupos nos próximos anos. Desta vez, lemos excertos e falámos destas pessoas e livros
, Folhas de erva de Walt Whitman (trad. Maria de Lourdes Guimarães)
, Poemas de Emily Dickinson (trad. Ana Luísa Amaral)
, O aperto do parafuso de Henry James (trad. Aníbal Fernandes)
, «Homens» de Gertrude Stein (trad. Marília Garcia e Valeska de Aguirre)
, O bosque da noite de Djuna Barnes (trad. Francisco Vale e Paula Castro)
, Reflexos num olho dourado de Carson McCullers (trad. Marta Mendonça)
, Carol de Patricia Highsmith (trad. Ana Luísa Amaral)
, O quarto de Giovanni de James Baldwin (trad. Valério Romão)
, «Uivo» de Allen Ginsberg (trad. Margarida Vale de Gato)
, «Capitalismo e identidade gay» de John D'Emilio (trad. Marie Castañeda, Gabriela Novais e Rafael Barros)
, «A transformação do silêncio em linguagem e acção» de Audre Lorde (trad. Gisela Casimiro)
, «Será o recto um túmulo?» de Leo Bersani (trad. António Fernando Cascais e Sandra Mendes)
, Memórias com cheiro a gasolina de David Wojnarowicz (trad. Ana Isabel Soares)
, Stone Butch Blues de Leslie Feinberg (trad. Inês Fernandes e Joana Matias)
, «Punks, sapatonas e welfare queens: o potencial radical da política queer?» de Cathy J. Cohen (trad. Valeria Lima de Almeida)
, O livro de Frank de CAConrad (trad. Alice dos Reis e Isadora Neves Marques)
, Destransição, baby de Torrey Peters (trad. Raquel Almeida)
, Quem tem medo do género? de Judith Butler (trad. Nuno Quintas).
Para fechar este capítulo, deixo-vos ainda um outro poema de CAConrad, de que gosto muito. Não vou respeitar as mudanças de linha, mas procurem-no online que encontram, CAConrad tem criado uma espécie de caligramas não-figurativos e a formatação do Substack não ajuda. O poema é do livro «Amanda Paradise: Resurrect Extinct Vibration (2016-2020)», de 2021, e está compilado na antologia You Don't Have What It Takes to Be My Nemesis, and Other (Soma)tics, de 2023:
GLITTER IN MY WOUNDS
first and most important / dream our missing friends forward / burn their reflections into empty chairs / we are less bound by time than the clock maker fears / this morning all I want is to follow where the stone angels point / birdsong lashing me to tears / heterosexuals need to see our suffering / the violent deaths of our friends and lovers / to know glitter on a queer is not to dazzle but to / unsettle the foundation of this murderous culture / defiant weeds smashing up through cement / you think Oscar Wilde was funny / well Darling I think he was busy / distracting straight people / so they would not kill him / if you knew how many times I / have been told you're not like my / gay best friend who tells me / jokes and makes me laugh / no I sure as fuck am not / I have no room in my life to / audition for your pansy mascot / you people can't kill me and / think you can kill me again / I met a tree in Amsterdam and / stood barefoot beside it for twenty / minutes then left completely restored / yet another poem not written by a poet / sometimes we need one muscle to / relax so the others follow / my friend Mandy calls after a / long shift at the strip club to say / while standing in line for death I am / fanning my hot pussy with your new book / will you sign it next week my fearless faggot sister
CAConrad
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este fim de semana, dias 1 e 2 de março, não estamos no Porto. Na escola Martins de Freitas, em Coimbra, acontece o II Fórum LGBTQI+ «O orgulho contra o conservadorismo» e nós estaremos novamente por lá a vender o nosso catálogo de não-ficção: sábado de manhã e de tarde e domingo de manhã. Como terça-feira, dia 4, é Carnaval e a Livraria também não está aberta, amanhã fechamos a porta às 19h e voltamos à Rua do Paraíso apenas quarta-feira, dia 5 de março. Voltamos não, volta o Ricardo que eu estarei à mesma hora a caminho de Lisboa para a terceira sessão mensal das conversas sobre referências LGBT na literatura portuguesa, que as Causas Comuns têm produzido na livraria da Casa do Comum, no Bairro Alto. Mas depois volto logo e comigo vem para cima também a equipa das Causas Comuns porque nos dias 8 e 9 de março apresentam Quem cuida do jardim no Teatro Helena Sá e Costa. É um fim de semana especial, o Bar of Soap vai andar a celebrar o seu quarto aniversário na Rua do Bolhão (já seis no total), por isso não deixem de ver o que andam os nossos amigos a planear também por lá. E começa assim a mais bonita fase do ano, dos aniversários, da primavera, da lenta e esperançosa caminhada até ao verão. Bem estamos a precisar, a todos os níveis. No sábado 15 de março, por exemplo, inauguramos na aberta a primeira exposição de 2025: o ano arranca com I'll lick your wounds, um trabalho de fotografia de João Negrume, mas dele falo melhor na minha próxima carta. Para já fiquem com estes títulos do nosso catálogo, caso andem a precisar de sugestões de leitura
, Night Sky with Exit Wounds de Ocean Vuong
, Wound de Oksana Vasyakina
, The Well-Dressed Wound de Derek McCormack
, L'homme blessé de Patrice Chéreau e Hervé Guibert
, The Fifth Wound de Aurora Mattia
, This World is a Wound de Billy-Ray Belcourt.
Ainda uma coisa: a 25 de março retomamos as conversas na livraria (até à última terça de abril, dia 29), com textos de língua inglesa, mas desta vez do Reino Unido.
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esta semana, recebemos Estar além: a persona queer de António Variações, a novidade do António Fernando Cascais sobre música e teoria queer, editada pelas Edições 70. Estava a folhear o livro e descobri esta citação, que foi o que usei como descrição do livro na nossa publicação de Instagram:
Sem negarmos que o humorismo «camp» não seja desprovido de riscos, o certo é que ele é comum a múltiplos grupos duradouramente oprimidos, a ponto de terem tido tempo para desenvolver o seu tipo particular de humor e inclusive para se tomarem a si mesmos como objetos dele, de forma a rirem de uma opressão de outro modo insuportável, cujas consequências muitas vezes são, tanto simbólica como literalmente, trágicas. Para compreender o seu alcance é preciso, porém, estar em sintonia com a reação em que ele consiste e ter consciência da opressão que a suscita, condições normalmente alheias a quem não sente esta opressão. O «camp» ri-se da vitimização, para que a vítima a ela não se reduza e nela não se enclausure para sempre, incapaz de a ultrapassar. Não há bicha digna desse nome que não seja capaz de rir de si, mas ri seriamente, lá onde a sociedade heteronormativa dela ri amesquinhadora e levianamente.
Na mesma noite, fomos ao Batalha rever o Looking for Langston (mais um para a lista: Isaac Julien 1989), a sessão tinha uma folha de sala escrita pelo miguel bonneville, que a dado momento diz (encontram em breve o texto completo no site do cinema):
aqueles que estão sob o poder de alguém ou de alguma coisa têm esse conhecimento, e por isso estão sempre para além dos que detêm o poder – dançam, bebem, tocam, beijam, riem, exercem a liberdade com os próprios corpos –, sabem que qualquer solução institucional, constitucional, é um passo, mas nunca uma verdadeira solução, nunca uma verdadeira liberdade.
«humor é rir daquilo que não se tem quando se deveria ter», disse langston. o humor como ruptura, então, como forma de resistência e sobrevivência diante da adversidade. como resposta à tragédia, à falta – de direitos, de oportunidades, de reconhecimento. rir como forma de expor a fragilidade da ordem e da hierarquia. riso que surge da consciência de uma privação – sempre injusta.
rir do que falta é uma forma de expor o absurdo, de desarmar a dor, de transformar o sofrimento. é uma forma de alívio, sim, mas também de subversão e de crítica. uma denúncia, um mecanismo de sobrevivência, uma maneira de afirmar a própria humanidade, mesmo perante o roubo.
Como fomos abençoados pelo Jimmy Sommerville de querubim ali no final do filme, deixem-me terminar por hoje com dois vídeos dele: este e este. O Sommerville a dançar sempre me fez feliz.