Ler a sala
«I had my spot at the middle of the first balcony row and during the screening I quickly forgot the questions that otherwise preoccupied me» (Esther Kinsky)
1. Na sequência das dezenas de denúncias de assédio e de abuso no jazz português que vieram a público nas últimas semanas, republicou-se um texto com cerca de dois anos sobre a experiência de um ator durante o casting para o filme O fantasma, de João Pedro Rodrigues. Podem encontrá-lo aqui. Li-o nessa altura, quando ele primeiro foi partilhado, ou quando primeiro saltou do Letterboxd para o Instagram. Era uma espécie de desabafo, ou de incompreensão: o autor da publicação não percebia como é que os filmes de João Pedro Rodrigues e de João Rui Guerra da Mata continuavam a ser financiados e produzidos, e, depois, exibidos e premiados em vários festivais, sem que se falasse sobre o que aconteceu ao Telmo Meneses, protagonista daquele primeiro filme. Depois dessa publicação, aconteceu o que todos sabíamos que ia acontecer: nada. Os realizadores nada disseram sobre o assunto, acharam que nada tinham que dizer. De vez em quando, lá os vemos (no Instagram dos dois) pelo mundo fora, neste ou naquele festival. Os filmes deles, os novos e os antigos, ainda são programados. E a vida continuou. Passaram mais de vinte anos: o filme é de 2000. Se houver matéria criminal nas denúncias que foram feitas, e não faço ideia se há, é possível que tudo já tenha prescrito. Não sei: não sei nada no que diz respeito à lei e à penalidade deste tipo de acusações. Por isso, em vez de falar dos abusos, de que nada sei, ou de relações de poder, vou falar de programação: e da responsabilidade enorme que é programar.
2. O filme é de 2000, dizia eu: e, com a passagem dos anos, tornou-se uma obra incontornável da história do cinema português. Já lá vamos, a todo este vocabulário: que é uma forma de desresponsabilização para críticos e programadores. Ainda esta semana, o filme passou duas vezes no MoMA, em Nova Iorque, domingo e segunda-feira, dentro de um ciclo, programado por Francisco Valente, dedicado à «revolução contínua» dos últimos sessenta anos do cinema português. Esta semana também, na quarta-feira, o filme foi exibido na Casa do Comum, em Lisboa. Essa sessão foi programada, não sei há quanto tempo, no contexto de um ciclo de cinema português contemporâneo: mas, depois da publicação sobre O fantasma ter voltado a circular, várias pessoas terão escrito à Casa do Comum a pedir que a sessão fosse cancelada. Ao que parece, porque o comunicado não é inteiramente claro (podem lê-lo aqui), decidiram manter a exibição do filme, e anteceder-lhe uma conversa sobre «o que fazer com filmes (livros, obras de arte) importantes, sobre os quais pairam dúvidas sobre o seu processo de feitura».
3. Vamos ignorar, desde já, a ingenuidade que é partir-se do princípio de que uma conversa de hora e meia vai trazer nem que seja um princípio de resposta para uma questão tão complicada como esta. A Casa do Comum pode dizer que quer discutir, com a sua comunidade, o que fazer a estes filmes, e essa é uma discussão importante, mas decidir manter a exibição, independentemente do que se diga durante a conversa, já é tomar uma posição: é dizer que os objetos são mais importantes do que as práticas. E mesmo que a conversa fosse (e tenha acabado por ser) sobre as denúncias e sobre as condições de abuso em que certos filmes são feitos, o tempo para a contextualização não é agora: porque qualquer contexto é uma chave de leitura para o filme e, agora, o filme não importa para nada. Agora, não importa discuti-lo, nem com a desculpa de que ele é o motivo pelo qual os abusos aconteceram: agora importa falar dos abusos. Sobretudo neste momento, que é um raro momento de atenção para as várias violências, mais ou menos recentes, acho que perguntarmos «o que fazer a estes filmes?» é muito menos importante do que perguntarmos «o que fazer a estas pessoas?», às vítimas. O comunicado da Casa do Comum dizia que a conversa serviria para contextualizar o filme, dentro de uma conversa mais alargada sobre o que fazer com estes objetos, mas (não sei o que aconteceu durante a conversa, quem falou, o que se disse) ou muito me engano, ou o que aconteceu foi precisamente o contrário: foi o filme, e o estatuto do filme, enquanto exemplo importante do cinema queer português, a contextualizar os abusos: a pô-los em perspetiva.
4. Mas é preciso lembrarmo-nos de uma coisa. Mesmo que o filme seja uma obra fundamental do cinema queer português, o cânone não é estático, nem inquestionável. Era disso que eu falava lá em cima, quando dizia que todo este vocabulário é uma forma de desresponsabilização: porque é o mesmo que dizer que a história já está escrita e que não há nada que se possa fazer. A questão é que há: nós não somos obrigados a repetir o cânone. Aliás, qualquer cânone só se segura por preguiça e por repetição. E é aqui que entram os programadores: porque se estivéssemos dez anos sem passar um filme, sem escrever sobre ele, o estatuto dele alterar-se-ia, inevitavelmente. Nem sequer é preciso falar mal do filme, porque o que se está aqui a discutir não é se o filme é bom ou mau: estamos a discutir as condições em que ele foi feito, a importância que damos a isso, e estamos a discutir porque é que os seus autores acham, ou sentem, que não têm de dizer nada sobre o assunto. Estamos a discutir todo este sistema que escolhe fechar os olhos a estas coisas: produtores, realizadores, distribuidores e, sim, também, programadores. Estamos a discutir esta espécie de privilégio: que é poder ficar calado e seguir em frente. Não sei se, desde que circulou pela primeira vez, a denúncia trouxe consequências para o trabalho deles. Não sei se hoje é mais difícil para o João Pedro Rodrigues e o João Rui Guerra da Mata arranjarem financiamento para fazer os seus filmes, ou levarem-nos a festivais: mas sabemos de outros casos (os de Roman Polanski e Woody Allen, por exemplo) para quem fazer filmes se tornou cada vez mais difícil. É a mão do mercado a funcionar: as produtoras e as distribuidoras não querem associar-se a um ativo que vêem como tóxico. E o cinema, como sabemos, é o dinheiro vinte e quatro vezes por segundo.
5. Ando a pensar nisto, no quê e no como de ver, desde que escrevi (há duas semanas) sobre aquele cinema na Hungria que reabriu depois de doze anos fechado. Que filmes escolheu Esther Kinsky mostrar no seu cinema? O livro fala de alguns títulos, muito vagamente (clássicos do cinema húngaro, outros filmes), mas depois diz isto, que é muito curioso. A partir do momento em que se tinha tornado claro que a experiência falhara (a reabertura do cinema), escreve ela, «I only ordered films that interested me, films I had always wanted to see, films I wanted to see again at last»: que é uma espécie de desistência (se mais ninguém, que venha eu ver os filmes), mas também é o espaço mental em que funcionam muitos programadores. Isso: e partirem do princípio que o que eles já viram toda a gente já viu. Penso sempre nas pessoas do teatro que, quando encenam uma peça clássica, nunca se lembram que pode estar, no meio daquele público todo, alguém que nunca a viu, que não conhece a história, e que não está a comparar essa encenação com nenhuma outra: mas as pessoas do teatro só trabalham umas para as outras, e a originalidade (que é algo que não existe, lamento) é sempre mais importante do que a comunicação. Ora, programar é sempre comunicar, é contar uma história: como se conta uma história a uma criança, para lhe dizer do mundo lá fora. Programar não é fazer uma lista no Letterboxd, nem é mostrar a alguém os nossos filmes favoritos: isso fazemos em casa, com os nossos amigos. É por isso que, em minha casa, eu vejo filmes que nunca programaria: porque a responsabilidade de um programador é outra, e é maior. Programar é agir na cidade, é responder ao aqui e ao agora: programa-se para um tempo, para um lugar e, acima de tudo, para um determinado público. Aliás, no longo prazo, programar é a história de uma instituição a conhecer o seu público, e vice-versa. Mas programar também é fazer parte da economia de um filme: real ou simbólica. É dar aos filmes espaço e tempo e atenção: e, na maior parte dos casos, dinheiro a quem os distribui. Por outro lado, e ao contrário do que muita gente parece pensar, não programar este ou aquele filme não faz com que eles deixem de existir: não é apagá-los, nem destruí-los, e não equivale a fazer deles filmes malditos: sobretudo hoje, que qualquer filme se encontra, com maior ou menor facilidade, num canto qualquer da internet. É o resultado de uma escolha. Além disso, não programar certos filmes tidos como incontornáveis permite que os lugares normalmente tomados por esses filmes sejam ocupados por outros, e permite que se pense uma outra história do cinema feita de outros filmes e de outras pessoas.
6. Diziam-me esta semana, ainda antes da sessão na Casa do Comum, que esperavam que o filme não fosse exibido, ou que a conversa os levasse a essa decisão, porque passar o filme, neste momento, era a coisa menos urgente: e agrada-me essa ideia de urgência associada à programação, porque, mesmo naquelas instituições em que o peso da máquina obriga a que tudo seja decidido com meses de antecedência (e não me parece que isso se aplique à Casa do Comum), não deixa de existir o tempo do dia-a-dia, da atenção às coisas do mundo: da urgência, justamente. A mesma pessoa dizia-me que esperava que a Casa do Comum soubesse ler a sala. (Não soube.) Disse-o em inglês, e em inglês a expressão significa: perceber o quadro mais largo, que é a conversa na cidade e no país, saber para quem estamos a falar, e conhecer-lhes as expectativas, as necessidades, as preocupações. E agora não me ocorre melhor definição de o que é programar: é ler a sala, dentro e fora: e também é cancelar a exibição de um filme, quando é isso que a situação pede. Em toda esta conversa, parece que estamos presos a uma série de inevitabilidades. Primeiro, o filme é incontornável, logo: tem de ser programado. Depois, o filme foi programado, logo: tem de ser mostrado. Porquê? Eventualmente, mas não agora, teremos de falar do que fazer a este e a outros filmes: quando exibi-los e de que forma, em que contexto e com que ressalvas: para que as pessoas possam vê-los e olhar para eles com toda a informação relevante. Agora, falar dos filmes, e deste filme em particular, enquanto objeto, é uma distração. Agora, que a atenção coletiva e mediática está voltada para a questão dos abusos, não é a hora de termos essa conversa. Se há uma coisa que sabemos bem, infelizmente, é que esta atenção não há de durar muito tempo.
Boa semana,
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