[A Livraria aberta voltou ontem ao horário completo e à programação, com a apresentação de Bichxs de merda de p. feijó. Até fim de setembro, teremos ainda as apresentações de Tales Frey #1 (dia 21), celebração do trabalho do performer, e Sódio, livro de poesia de Sónia Baptista (dia 30).
Durante o verão, as férias e a minha ausência da livraria, escrevi cartas sobre livros de poesia que me têm entusiasmado: aqui em inglês, aqui em castelhano, aqui a primeira parte em português (só com autores mortos). É hora de terminar para começarmos um novo ciclo.]
4. Miguel Bonneville
Há uns anos, houve um artigo de jornal chamado “Porque é que não andamos todos a ler furiosamente João Miguel Fernandes Jorge?”. Essa expressão ficou-me na cabeça, “ler furiosamente” pareceu-me então um exercício de enorme valor. E lembro-me dela sempre que pego num livro de Miguel Bonneville. A resposta, neste caso, é, ainda assim, mais fácil de dar. Não andamos a ler furiosamente porque os seus livros não existem na maioria das livrarias: é assim tão simples (e complicado). Mesmo na aberta só temos disponíveis os mais recentes, mas, por causa do Ricardo, eu tenho a sorte de poder ler os que temos em casa. O nome Miguel Bonneville – assim mesmo, rasurado [“o que eu gostava de dizer é que o suicídio é muito mais do que uma despedida, é um modo de vida.” (primata: 13)] – é certamente conhecido nas artes performativas, mas é-o na poesia? [“o bem é a ordem dos outros. / e por isso pertenço ao mal.” (primata: 11)] O que é que alguém tem de escrever para ser lido como poeta? Ou tem de ser lido por quem? [“a violência exercida sobre o meu corpo – antes de tudo isso – levou-me à poesia. quando eu não sabia ainda se queria ou não desistir de ser quem eu era. talvez por (ainda?) não ser nada nem ninguém. / sem a poesia tudo o que eu tivesse feito não passaria de caralhos na boca ou caralhos na mão. fodas. fodas tantas vezes tépidas. desinteressantes e desencontradas.” (primata: 29)].
Nos últimos anos, sensivelmente a meio dos primeiros vinte de obra, criou um ciclo de trabalhos de palco quando possível (apoio, dinheiro, oportunidade) acompanhados de livros: não necessariamente com o guião dos espetáculos, mas com outra forma de tocar neles. Quem são estes outros e estas outras que urge tanto ser? [“depois de tudo o que deixei que me tirassem, ofereci-me a única coisa que conheci que fosse valiosa: a imaginação.” (primata: 18)]. Começou com A importância de ser António de Macedo (2013), Simone de Beauvoir (2014) e Agustina Bessa-Luís (2016), dos quais não se conhecem livros (o que não significa que não tenham existido). A importância de ser Paul B. Preciado (2017), com o livro Notas de um primata suicida (2017), e A importância de ser Georges Bataille (2019), com o livro Dissecação de um cisne (2018), foram a minha introdução à sua escrita.
Ontem, a folheá-los de novo sentado ao computador, o Ricardo deitado no sofá a ver um filme, dei por mim a rir alto e a chorar e a bufar (e eu sei que isto pode dizer mais sobre mim, mas também está bem assim) com passagens que não sabia, nunca me disseram, que podiam ser escritas; melhor: que já tinham sido escritas. Um dia que o primata – que dialoga com Testo Junkie – seja reeditado, vão ter de me aturar. Eu arrepio-me com o facto de aquilo existir em Portugal desde 2017. Arrepio-me ainda mais com o facto de muito pouca gente ter tido o privilégio de o ler. Vou deixar-vos no fim do ponto uma longa citação que anda comigo desde que lemos Preciado com a Odete na livraria e eu fui buscar o primata à minha biblioteca (acrescente-se que o primata de Bonneville é anterior ao próprio primata de Preciado, para quem leu Can the Monster Speak?) – ia partilhá-la na altura e não o fiz, vai hoje (aconteceu o mesmo com aquela entrevista do Daniel Faria, há sempre muita coisa que gostava de vos dar a ler). Mas continuo.
Ensaios de santidade (2019) acabaria por ser reeditado pela editora Sr Teste em 2021. Este não pertence ao mesmo ciclo d’A importância, mas eu estou aqui para vos dizer que o livro pode e deve ser lido como se fosse (“uma ruína melhor: um santo” – escreverá três anos depois em câmara escura). Porque toda a obra é contínua. Mesmo as que explodem [“destruo para aprender. / a partir daí posso compreender / e depois, então, amar. // foi assim que aprendi. / eu – / filho de saturno.” (câmara: 57)]. Mesmo que a continuidade que eu vejo não seja a que Bonneville quis criar [“é uma segurança para os outros também que / tenhamos o nosso plano delineado, como é suposto. que mantenhamos o corpo seguro e delimitado. que voltemos ao final da tarde. que escondamos que somos sempre muito mais do que se imagina. que queiramos também estreitar as nossas opções, porque escolhemos.” (primata: 10-11)].
Mais recentemente, A importância de ser Alan Turing (2020), com o livro Lamento do ciborgue (2021), e A importância de ser Marguerite Duras (2022), com o livro câmara escura (2022), fecharam o ciclo. Não preciso de vos dizer que todos estes títulos partilham referências e motivos entre si, “um erotismo inabalável” (cisne: 66) e, à quarta carta sobre poesia imagino que já vão sabendo isso sobre o que leio, uma relação complicada-mas-justa do amor com a morte [“I / perdi a oportunidade de ter morrido / antes de aprender / a ler / a escrever / a amar. // é origem da frustração / essa morte não cumprida // a origem da melancolia / essa morte por cumprir. // o que eu quero dizer é que essa perda / foi a primeira / me definiu. // II / essa oportunidade perdida tem uma relação directa com o facto de eu estar aqui // e estar aqui assim: / contido neste corpo, fora de mim / pronto a entregar-me a todos os corpos que vierem.” (santo: 8); “1. / a linguagem do amor é pobre / gostaria de a poder reinventar. // qual é a palavra para a boca / que expele com prazer a identidade? // 2. / levamos as diferenças para o desterro / deitamo-nos sobre a relva / dormimos abraçados. // é como se o coração ladrasse. // 3. / o amor deixado a meio apela à morte, / procura no prazer a redefinição do mundo.” (santo: 76-77)].
Todos estes livros em edição de autor são objetos preciosos e não apenas meios de papel: o primata é um pequeno livro azul de capa vazia e uma foto colada no interior; o cisne é um grande livro preto de capa vazia com relevo e uma foto colada no exterior (e os desenhos!); o santo é um missal vermelho com folha dourada; o ciborgue é cobre de capa vazia com relevo e algumas folhas soltas com símbolos; a câmara não tem capa, é toda texto costurado. Deixo-vos com um excerto daquele pequenino livro azul, aparentemente dispensável; não olharíamos para ele duas vezes num monte de papelada em qualquer alfarrabista (aprendi ontem com a p. feijó que, brincando às etimologias, “olhar duas vezes” é respeitar):
II
homem é aquilo que vocês dizem que eu sou. “ninguém nasce mulher, torna-se mulher” foi aquilo que a beauvoir disse. então mulher é o que eu poderia ser. mas nesse processo de passar do que vocês decidiram que eu sou para o que eu pensava ser a única alternativa, o único escape: ser mulher, percebi que não sou nem uma coisa nem outra.
tal como não se pode dizer que a minha vida é sobre estas questões, quando dizem que o meu trabalho é sobre género estão errados. não, o meu trabalho não é sobre género. o meu trabalho é género; é transgénero.
eu não trabalho sobre essas questões – essas questões são o próprio trabalho. para além de todas as outras coisas.
nunca estarei de acordo com aquilo que, à primeira vista, sou. o meu corpo limita todas as interpretações possíveis sobre mim. nunca quis obrigar o meu corpo a pertencer a um género a não ser por mero acto de sobrevivência – e sempre tive horror a que condenassem as minhas paixões à morte pela forma que inevitavelmente sempre tive –, por isso a minha relação com ele sempre foi de estranheza.
enquanto a percepção de quem eu sou está em constante rotatividade, o corpo mantém-se o mesmo e está muito longe da ideia que tenho dele – aquele com o qual continuamente me deparo no espelho é um estranho, alguém que parece que conheço de vista.
essa rotatividade de géneros (não acredito que existam apenas dois ou três) faz com que a minha noção de corpo seja impalpável, ou porosa e maleável, coisa que infelizmente não é. pelo menos não de imediato.
o corpo foi sempre o que me impediu de viver plenamente as metamorfoses que vivi – e que vivo –, deixando apenas que ficassem a meio do caminho. tentei pô-las em prática através de tecidos, maquilhagem, adereços e exercícios, mas nunca foram suficientes.
o corpo é a passagem do tempo, implacável e presente. é a realidade daquilo que é fisico, que tem um nome, que é fixo, que se estraga, que apodrece. é a nossa ferramenta para estar em contacto com o mundo. é inseparável de tudo, é inseparável do resto.
não sei se seria capaz de pensar sem um corpo. ou se seria capaz de agir sem um corpo. e, apesar de não ter outra hipótese a não ser a de o aceitar, se quiser continuar a viver, o conflito, imagino eu, será constante.
(primata: 24-26)
5. Amândio Reis
[Não é por acaso que Luís Miguel Nava e Daniel Faria estão lado a lado na carta dos mortos e nesta Bonneville e Amândio. Jesus Cristo nasceu no solstício de inverno e João Baptista no de verão, são paralelos, o espelho um do outro.]
Eu já vos escrevi sobre o Amândio aqui e por isso este quinto ponto será muito curto. A questão é que na Páscoa eu só disse – propositadamente – o que vi na construção dos livros. Ficou tudo por dizer. Por exemplo, qual é para mim o tema a que a sua obra volta vezes e vezes sem conta. Mas na verdade está lá: uma metáfora trans em muitas palavras, o tornar-se outros, anteriores, posteriores ou ainda o inicial virado ao contrário – a poesia como um caroço (qual grão qual quê) na engrenagem, a destruir a expectativa da mesmidade (estou a citar feijó de novo, façam-me o favor de ler Bichxs de merda).
6. Sinais de Saturno (não edições, 2023)
Não vou ainda fazer balanços de 2023, até porque já tenho à minha frente a tradução portuguesa de A imagem fantasma de Hervé Guibert que acaba de sair pela BCF, e de que provavelmente vou gostar imenso, mas ler a obra coletiva e anónima Sinais de Saturno no início do ano fez-me sentir uma enorme euforia. Não é todos os dias que se lê um livro com poesia homoerótica de imagens tão explícitas e – diria até – novas (para nós). Nada escapa: dos objetos sexuais ao momento de expelir o esperma depois do sexo anal, está lá muito do que tem ficado de fora do lirismo português. Mas a euforia não se resume à lata de escrever sobre tais temas, nem ao desejo de saber quem escreveu o quê (o que não se sabe, só podemos especular), é também sobre esta poesia existir e de ser tão bonita e terna: como o desejo sexual também pode ser.